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sexta-feira nov 22, 2024

Carboximaltose férrica em pacientes com insuficiência cardíaca

Escrito por: Remo H. M. Furtado em 26 de agosto de 2023

5 min de leitura

O quê?  

O estudo HEART-FID foi um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, que avaliou o uso de reposição de ferro endovenosa com carboximaltose férrica em pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida (ICFER).   

 

Por quê? 

O ferro é um componente essencial de diversos processos bioquímicos relacionados à geração de ATP, sendo um elemento fundamental para a saúde do miócito. Estudos prévios já têm sugerido uma associação entre deficiência de ferro e pior prognóstico em pacientes com ICFER. Entretanto, estudos randomizados que testaram a reposição de ferro endovenoso na ICFER tiveram resultado inconclusivos até o momento.  

 

Como?  

O estudo incluiu pacientes com ICFER (isto é, FEVE ≤ 40%), sintomas persistentes (classe funcional New York Heart Association) II-IV, deficiência de ferro documentada (ferritina abaixo de 100 ng/L ou entre 100 e 300 ng/L mas com índice de saturação de transferrina < 20%) e com NT-proBNP elevado ou hospitalização recente por insuficiência cardíaca descompensada. O estudo randomizou os pacientes para carboximaltose férrica injetável (doses de 750 mg em intervalos de 6 meses, dividida em duas infusões com uma semana de diferença, com ajuste conforme peso corporal, níveis de ferritina e de hemoglobina) versus placebo.  

O desfecho primário do estudo foi uma análise hierárquica envolvendo mortalidade, hospitalização por insuficiência cardíaca, e teste de caminhada de 6 minutos. O desfecho secundário principal foi o tempo até morte cardiovascular ou hospitalização por insuficiência cardíaca. Em virtude de uma exigência regulatória e a fim de controlar o erro tipo 1, o desfecho primário foi analisado com um nível de significância de P bicaudal < 0,01, e o desfecho secundário principal com P < 0,04 bicaudal.  

 

Estrutura PICOT 
Population:  Pacientes com ICFER e deficiência de ferro      
Intervention  Carboximaltose férrica  
Control:  Placebo   
Outcome  Análise hierárquica de mortalidade, hospitalização por insuficiência cardíaca e teste de caminhada de 6 minutos 
Time  2 anos    

 

E aí? 

Um total de 3065 pacientes foram incluídos, sendo 1532 randomizados para o grupo carboximaltose férrica e 1533 para placebo, seguidos por um tempo mediano de 2 anos. A idade média foi de 69 anos, 34% dos pacientes eram do sexo feminino e 47% tinham classe funcional III-IV. A FEVE média foi de 31%, e o NT-proBNP mediano foi de 1400 pg/mL. Dos pacientes incluídos, 30% estavam em uso de sacubitril-valsartana e 8% em uso de inibidores de SGLT2.  

A infusão de carboximaltose férrica levou a um aumento de ferritina de um basal de 57 ng/L para 254 ng/L em um ano. Houve um total de 10,3% de óbitos em 1 ano no grupo placebo versus 8,6% no grupo carboximaltose férrica. Em termos de hospitalização por insuficiência cardíaca, houve 14,8% de eventos no grupo placebo e 13,3% no grupo carboximaltose férrica; enquanto o grupo placebo teve um aumento médio de 4 metros no teste de caminhada contra 8 metros no grupo carboximaltose férrica. Utilizando o teste de Wilcoxon (que se baseia no ranqueamento dos pacientes conforme as “vitórias” comparando os pares entre os grupos), o valor de P foi 0,019, portanto, não considerado estatisticamente significativo baseado no limiar estabelecido no estudo. A win ratio comparando carboximaltose férrica versus placebo foi de 1,10, intervalo de confiança (IC) 95% 0,99-1,23 (um win ratio acima de 1,0 sugere benefício do tratamento). No desfecho secundário de morte CV ou hospitalização por insuficiência cardíaca, a taxa anual estimada de eventos foi de 17,3% no grupo placebo versus 16,0% com carboximaltose férrica (hazard ratio 0,93; IC 95% 0,81-1,06). Um total de 30% dos pacientes que receberam carboximaltose férrica tiveram aumento igual ou maior a 20 metros no teste de caminhada após 12 meses contra 26% no grupo placebo (odds ratio 1,24; IC 95% 1,06-1,45). A carboximaltose férrica foi segura, sem aumento de eventos adversos sérios comparados ao placebo.  

E agora?  

A deficiência de ferro é uma co-morbidade comumente despercebida em pacientes com ICFER e tem origem multifatorial, como déficit na absorção pela própria doença, sangramento oculto e estado inflamatório crônico com dificuldade de mobilização dos estoques da medula óssea. Estudos prévios com a reposição endovenosa de ferro (a reposição oral não funciona na ICFER) tiveram resultados inconclusivos, sobretudo por impacto da pandemia de COVID-19 na condução dos estudos. Enquanto o benefício sobre mortalidade ou hospitalização por insuficiência cardíaca era incerto, havia uma melhora de sintomas e capacidade funcional em alguns estudos. Isso fez com que a diretriz de insuficiência cardíaca do ESC (recentemente publicada neste mesmo congresso) já colocasse a reposição de ferro endovenosa como conduta classe I para melhora de sintomas porém classe IIa para redução de hospitalização por insuficiência cardíaca. 

O estudo HEART-FID foi o maior de todos os estudos, tendo um poder adequado para avaliar desfechos clinicamente relevantes e conduzido com bem menos impacto da pandemia de COVID-19. O estudo não encontrou uma diferença estatisticamente significativa (vejam com calma o limiar do valor de P diferente do usual que comentamos acima) no desfecho primário a favor do tratamento. Também não houve qualquer diferença no desfecho secundário principal. Uma discreta melhora no teste de caminhada de 6 minutos foi observada com o uso de carboximaltose férrica.  

Diante destes resultados, sendo o HEART-FID a melhor evidência disponível até o momento, a reposição de ferro endovenosa com carboximaltose férrica pode ser considerada no tratamento da ICFER em pacientes que tenham deficiência de ferro comprovada e sintomas refratários ao tratamento clínico otimizado, com o objetivo de melhora sintomática. Esta recomendação não se aplica a pacientes com diagnóstico de anemia ferropriva, que já devem de qualquer modo receber reposição de ferro. Baseado nos achados deste estudo, provavelmente a diretriz do ESC, curiosamente lançada um dia antes da publicação dos resultados do HEART-FID, não precisará ser modificada.  

Referência

  1. Mentz RJ, Garg J, Rockhold FW, et al. Ferric Carboxymaltose in Heart Failure with Iron Deficiency. N Eng J Med 2023; Epub ahead of print DOI: 10.1056/NEJMoa2304968 

Sobre o autor

Remo H. M. Furtado

Diretor de Pesquisa do BCRI, Coordenador da Pós-graduação em Pesquisa Clínica da Galen Academy e Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da USP