Um novo escore de risco de sangramento em pacientes utilizando anticoagulantes orais diretos - MDHealth - Educação Médica Independente
quinta-feira nov 21, 2024

Um novo escore de risco de sangramento em pacientes utilizando anticoagulantes orais diretos

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 28 de setembro de 2023

6 min de leitura

O quê? 

Um estudo de coorte retrospectivo, baseado em bancos de dados de diversos tipos de estudos combinados (incluindo de ensaios clínicos randomizados), procurou desenvolver e validar um novo escore de predição de risco de sangramento em pacientes com FA em uso dos anticoagulantes orais diretos (DOAC, direct acting oral anticoagulants): o DOAC Score.  

 

Por quê? 

O uso dos DOACs, sejam os inibidores diretos dos fatores IIa ou Xa, tem se amplificado na última década, por equilibrarem o benefício da prevenção de acidente vascular cerebral (AVC) e embolização sistêmica com o menor risco de sangramento (em alguns perfis clínicos) em pacientes com fibrilação atrial (FA). O escore preditor de risco de eventos tromboembólicos CHA2DS2-VASc é uma ferramenta essencial na avaliação da indicação da anticoagulação. Porém, a avaliação do risco de sangramento pelo uso de anticoagulantes se baseia no HAS-BLED, escore que foi desenvolvido para pacientes em uso de antagonistas da vitamina K(AVK) e, portanto, sem boa acurácia ou validação adequada no contexto atual dos DOACs.   

 

Como? 

O estudo primariamente desenvolveu um escore de risco de sangramento em pacientes em uso de DOACs. Para tanto, avaliou retrospectivamente os fatores de risco relacionados ao aumento do sangramento em pacientes do ensaio clínico RE-LY (The Randomized Evaluation of Long-Term Anticoagulation Therapy) e incluiu os 5684 pacientes do braço de 150mg da Dabigatrana, comparados aos que usaram varfarina. Posteriormente, os autores refinaram o modelo, antes de sua validação, entre 12296 indivíduos com FA do registro GARFIELD-AF (Global Anticoagulant Registry in the Field-Atrial Fibrillation), que faziam uso também de apixabana, rivaroxabana ou edoxabana, trazendo mais dados sobre uma variedade de DOACs. 

Finalmente, a validação externa para garantir generalização do escore foi conduzida em 2 coortes:  a COMBINE-AF (A Collaboration Between Multiple Institutions to Better Investigate Non-Vitamin K Antagonist Oral Anticoagulant Use in Atrial Fibrillation) que consiste em uma meta-análise de dados individuais reunindo  ensaios clínicos randomizados que avaliaram diferentes NOACs em pacientes com FA ( ROCKET AF, ARISTOTLE, ENGAGE AF-TIMI 48, AVERROES, além do RE-LY). Uma base de dados da rotina assistencial do sistema de saúde canadense, a RAMQ, também foi utilizada para complementar a validação.  

As variáveis ​​preditoras foram pré-determinadas e selecionadas com base em evidências anteriores de associação com sangramento ou no julgamento clínico dos autores e incluiram: idade, sexo, índice de massa corporal, taxa de filtração glomerular (TFG), histórico de tabagismo, uso de álcool, história de AVC/ataque isquêmico transitório/embolia sistêmica, história de sangramento (menor ou maior), doença hepática, doença arterial coronariana, insuficiência cardíaca, diabetes, hipertensão, uso de aspirina ou terapia antiplaquetária dupla e uso de antiinflamatórios não esteroidais. 

O desfecho primário foi o sangramento grave (uma redução de 2,0 g/d Lou mais na hemoglobina, necessidade de transfusão de 2 unidades de concentrados de hemáceas, sangramento fatal ou sangramento sintomático em área ou órgão crítico) pela International Society on Thrombosis and Haemostasis (ISTH) em 1 ano. O desfecho secundário foi o sangramento ameaçador à vida.  

A associação do desfecho sangramento grave com variáveis ​​preditoras foi avaliada por meio de análise de regressão univariada de Cox, mantendo todas as variáveis ​​com limiar de significância <0,30. Posteriormente foi realizada a técnica de stepwise com as demais variáveis pré-especificadas, para complementar o peso das variáveis preditoras para o escore. Para facilitar a implementação clínica, o resultado do modelo multivariável final foi convertido em uma pontuação simplificada baseada em pontos, o DOAC-Score, o qual foi então comparado com o escore HAS-BLED. 

 

Estrutura PVOT 

Population: Pacientes com fibrilação atrial em uso de DOACs 

Variables: fatores classicamente preditores de sangramento; 

Outcome: sangramento grave (critério ISTH) 

Time: 1 ano 

 

E aí? 

O DOAC-Score estabeleceu variáveis clínicas para predição do risco de sangramento, podendo ser classificado desde muito baixo risco (0-3 pontos) até muito alto risco (10 pontos), conforme a Tabela 1.  O modelo final teve capacidade de discriminação moderada no risco de sangramento de 1 ano, para o estudo RE-LY (estatística C 0,75; IC 95% 0,73 a 0,77).  O DOAC-Score se mostrou, ainda, superior na predição de sangramentos quando comparado ao escore HAS-BLED no  ensaio clínico RE-LY (estatística C 0,73 versus 0,60; P para diferença <0,001) e entre 12.296 indivíduos no GARFIELD-AF (estatística C 0,71 versus 0,66; P para diferença = 0,025). Ademais, nas coortes de validação, o DOAC-Score teve indicadores preditivos mais fortes do que o HAS-BLED quando avaliado em 25.586 indivíduos no COMBINE-AF (estatística C 0,67 versus 0,63; P para diferença <0,001) e em 11.945 indivíduos no RAMQ (estatística C 0,65 versus 0,58; P para diferença <0,001). 

Os autores demonstraram também a taxa de eventos de sangramento em 1 ano para cada estudo analisado. Para os pacientes na faixa “muito baixo” do escore, a incidência de sangramentos graves variou de 0,3 a 1,5%. Já para aqueles classificados na categoria “muito alto”, a variação observada foi de 3,7 até 13,9% de sangramentos graves em 1 ano. 

 

E agora? 

O DOAC-Score foi o primeiro escore de risco de sangramento desenvolvido com alto rigor científico e direcionado exclusivamente para pacientes com FA em uso de DOAC, independente da molécula. Considerando que atualmente essa estratégia medicamentosa é preferível e recomendada por diretrizes internacionais, a falta de uma ferramenta de predição específica aos DOACs, representava uma importante lacuna a ser preenchida pela comunidade científica.  Quando avaliamos sua qualidade, o DOAC-Score apresentou discriminação moderada na coorte de desenvolvimento, na coorte de refinamento e nas 2 coortes de validação em larga escala, além de ter consistentemente superado a predição de sangramento quando comparado ao escore HAS-BLED, o qual havia sido primariamente desenvolvido para populações em uso de antagonistas de vitamina K.  

O racional para o desenvolvimento do DOAC-Score traz grandes insights sobre farmacocinética e farmacodinâmica dos novos anticoagulantes, além de uma elegante análise epidemiológica relacionada a FA e ao risco de sangramento! Comparativamente ao HAS-BLED, o DOAC-Score considera de forma mais específica o peso individual de cada variável analisada, como o espectro de 4 faixas etárias entre a população idosa (avaliado no HAS-BLED apenas como acima ou abaixo de 65 anos), já que sabidamente a idade é fator de risco para FA e também para sangramento. A TFG para especificar a função renal foi mais um ponto de grande importância: os DOACs têm entre 25 até 80% de depuração renal, existindo inclusive necessidade de ajuste posológico em alguns medicamentos conforme a TFG estimada do paciente. A redução da dose também é orientada em algumas bulas para pacientes de baixo peso, o que também foi contemplado pelo novo escore.  Além disso, era imprescíndivel que o escore de risco de sangramento considerasse o uso de antiagregação com aspirina ou dupla antiagregação plaquetária associado aos DOACs. O DOAC-Score não só avaliou o impacto do uso de medicações concomitantes para aumento de risco de sangramento, como quantificou seu risco individual ou em combinação.  

Portanto, às vésperas de completarmos 15 anos da publicação do primeiro estudo com DOACs, o DOAC-Score poderá ser implantado como ferramenta de grande importância e fácil uso na prescrição de anticoagulação, uma vez que se baseia em dados clínicos normalmente disponíveis antes do início da terapia. Provavelmente, esperamos que brevemente as diretrizes internacionais incorporem o uso e ampla divulgação do DOAC-Score, permitindo uma avaliação adequada do risco de sangramento do paciente em uso dos DOACs, destacando aqueles em que os riscos são modificáveis e potencialmente reversíveis e trazendo maior cautela quando necessário. 

Referência

  1. Aggarwal R, Ruff CT, Virdone S, Perreault S, Kakkar AK, Palazzolo MG, Dorais M, Kayani G, Singer DE, Secemsky E, Piccini J, Tahir UA, Shen C, Yeh RW. Development and Validation of the DOAC Score: A Novel Bleeding Risk Prediction Tool for Patients With Atrial Fibrillation on Direct-Acting Oral Anticoagulants. Circulation. 2023 Sep 19;148 (12):936-946.  

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia