O quê?
O estudo Childhood Non-HDL Cholesterol and LDL Cholesterol and Adult Atherosclerotic Cardiovascular Events foi uma coorte prospectiva que avaliou a capacidade de predição do colesterol da Lipoproteína de Baixa Densidade (LDLc, sigla do inglês low density lipoprotein-cholesterol) e especialmente do colesterol não lipoproteína de alta densidade (não-HDLc, sigla do inglês non–high-density lipoprotein cholesterol) nos desfechos cardiovasculares na vida adulta.
Por quê?
A triagem da dislipidemia tem sido atualmente recomendada em crianças com múltiplos fatores de risco (como hiperglicemia, resistência insulínica e hipertensão arterial sistêmica) e/ou história familiar de doença arterial coronariana ou de hipercolesterolemia. Com o aumento na incidência de obesidade, diabetes tipo 2 e síndrome metabólica em crianças e adolescentes, tem havido crescente preocupação com o manejo comportamental e medicamentoso da dislipidemia ainda na infância. O colesterol não-HDL mede a massa de colesterol em todas as lipoproteínas aterogênicas e pode ser avaliado de forma confiável no estado sem jejum. Estudos recentes têm sugerido que o não-HDLc na infância é um melhor preditor de dislipidemia em adultos e é pelo menos tão bom quanto o LDLc na previsão de lesão arterial associada à aterosclerose. Por isso, ambos foram triados e comparados no presente estudo, para avaliação da evolução para eventos cardiovasculares na vida adulta.
Como?
Foram avaliadas informações de 7 coortes do banco de dados i3C Consortium (International Childhood Cardiovascular Cohorts), que contempla crianças dos Estados Unidos, Austrália e Finlândia. O presente estudo incluiu 21.126 participantes, com idades entre 3 e 19 anos, que tinham dados sobre os colesteróis não-HDL e LDL na infância (além de outras covariáveis) e dados de eventos cardiovasculares quando adultos (entre os quais 11.296 participantes puderam ser avaliados para eventos fatais/não fatais).
Os eventos cardiovasculares não fatais incluíram a primeira ocorrência adjudicada de infarto do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC), ataque isquêmico transitório (AIT), insuficiência cardíaca isquêmica, angina, doença arterial periférica, intervenção carotídea, aneurisma da aorta abdominal ou revascularização coronariana.
E aí?
Foram avaliados 38.589 participantes com dados de eventos cardiovasculares, dos quais 21.126 tiveram pelo menos uma avaliação na infância de colesterol não-HDL e colesterol LDL. Dentre os participantes, 51% eram do sexo feminino, 75,8% brancos, e a idade média da avaliação do perfil lipídico na infância foi aos 10 anos. No total, 62,7% dos participantes apresentaram LDLc e não-HDLc normais (em média 101 e 112, respectivamente); 1,5% com LDLc elevado, mas não-HDL-c normal, 4,6%com LDL-c normal e não-HDLc aumentado e 31,2% com níveis elevados de ambos.
Após um seguimento médio de 35 anos, ocorreram 153 eventos de morte cardiovascular (0,72%) e 352 eventos fatais/não fatais no subgrupo de 11296 pacientes (3,12%), ocorridos a uma idade média de 44,9 anos. Os níveis de LDLc na infância foram associados a maior risco de eventos cardiovasculares fatais (hazard ratio [HR] 1,28 por unidade de aumento no escore z,; intervalo de confiança [IC] 95% 1,08-1,52) e fatais/não fatais (HR 1,27; IC95% 1,14 a 1,41); assim como os níveis de não-HDLc (HR 1,35; IC95% 1,13-1,60 e HR 1,33; IC 95% 1,19 a 1,48) para eventos fatais e não fatais respectivamente. O colesterol não-HDL foi melhor preditor de eventos cardiovasculares do que o LDLc (análise ajustada para o tipo de coorte, sexo, idade da avaliação na infância, idade média e escore z para índice de massa corpórea e pressão arterial), inclusive quando foram discordantes entre si ( LDLc normal e não-HDLc alto).
E agora?
A identificação precoce da dislipidemia, associada à mudança no estilo de vida e ao tratamento medicamentoso, pode atenuar o risco cardiovascular na vida adulta. Nas últimas décadas, ocorreu uma importante conscientização quanto ao risco da hipercolesterolemia familiar no contexto da infância, porém o cenário atual é muito mais amplo. Documentos recentes de diretrizes nacionais e internacionais sobre dislipidemia e prevenção primária, bem como da Sociedade Brasileira de Pediatria, têm apontado o aumento do número de crianças e adolescentes com doenças metabólicas relacionadas ao estilo de vida, trazendo a dislipidemia de causas primárias para o foco de atenção e cuidado também na população pediátrica.
Por isso, atualmente, recomenda-se que, em crianças e adolescentes com obesidade ou outros fatores de risco metabólicos, é razoável medir um perfil lipídico em jejum, acima de dois anos de vida, para detectar distúrbios lipídicos como componentes da síndrome metabólica. E, mesmo naqueles sem fatores de risco, pode ser razoável medir um perfil lipídico em jejum, ou o não HDLc sem jejum, uma vez entre as idades de 9 e 11 anos, e novamente entre as idades de 17 e 21 anos, para detectar anormalidades lipídicas moderadas a graves.
O presente estudo reforça os méritos da avaliação desses marcadores na infância, demonstrando a associação entre níveis elevados de LDLc e não-HDLc em crianças e adolescentes ao maior risco de desenvolvimento de eventos cardiovasculares fatais e não fatais. Embora o LDLc continue a ser o principal alvo de colesterol na prática clínica em crianças, níveis elevados de não-HDLc podem fornecer informações prognósticas adicionais e têm as vantagens práticas de não necessitarem de jejum. Tal resultado deve mudar a prática clínica, reforçando a necessidade de coleta e avaliação individualizada do não-HDLc, muitas vezes negligenciado e nem sempre concordante com os resultados do LDLc, como demonstrado nessa coorte. Por fim, para o futuro, estudos prospectivos randomizados serão importantes para avaliar não somente o impacto da mudança do estilo de vida, como também os riscos e benefícios do tratamento medicamentoso precoce na população pediátrica.