O fardo da mortalidade no espectro da estenose aórtica não tratada - MDHealth - Educação Médica Independente
quinta-feira nov 21, 2024

O fardo da mortalidade no espectro da estenose aórtica não tratada

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 23 de janeiro de 2024

5 min de leitura

O quê?  

O estudo The Mortality Burden of Untreated Aortic Stenosis  foi uma coorte que avaliou dados de ecocardiogramas com o objetivo de descrever as taxas de mortalidade em todo o espectro de estenose aórtica não tratada, a partir de um banco de dados contemporâneo e do mundo real. 

 

Por quê?  

A estenose aórtica (EAo) é uma doença de evolução progressiva, classicamente associada a importante morbimortalidade. Apesar do tratamento cirúrgico ser indicado para os casos com alterações estruturais e hemodinâmicas importantes ao ecocardiograma (como gradiente médio do fluxo VE-Ao, velocidade de pico e área valvar), a repercussão clínica tem sido atualmente valorizada. Nesse sentido, outras medidas podem ser utilizadas, tais como: status funcional do paciente, grau de calcificação valvar e função ventricular esquerda.  Tais alterações podem estar presentes em fases mais precoces da doença, levando inclusive a aumento de mortalidade. Por isso, o presente estudo teve como objetivo avaliar as taxas de mortalidade global em diferentes gravidades de doença valvar aórtica, detectada por parâmetros ecocardiográficos clássicos. 

  

Como?  

Foram avaliadas dados anonimizados de 1.669.536 ecocardiogramas de 1.085.850 pacientes em 24 instituições norte-americanas, com idade >18 anos em toda a janela de análise. A avaliação tanto da presença quanto da gravidade da doença valvar foi derivada de relatórios ecocardiográficos usando um algoritmo de processamento de linguagem natural, clinicamente revisado e verificado, com uma precisão geral de >99%. Os pacientes com EAo confirmada foram classificados de acordo com a gravidade da EAo (nenhuma, leve, leve a moderada, moderada, moderada a grave, grave) baseado o diagnóstico documentado de EA em laudos ecocardiográficos gerados no contexto de exames habituais da prática clínica. 

 

Os desfechos foram avaliados usando estimativas de Kaplan-Meier ao longo de 4 anos, sendo a data-índice a data do diagnóstico relevante de EAo. O desfecho primário foi a mortalidade por todas as causas, sendo os pacientes censurados no momento do tratamento para EAo ou na última avaliação clínica documentado. O desfecho secundário foi o tempo para tratamento de correção da estenose aórtica.  

 

E aí?   

Entre 2016 e 2022, um total de 595.120 pacientes foram avaliados, com seguimento mediano de 421 dias até o tratamento, morte ou última visita médica registrada. Desses, 70.778 (11,9%) foram diagnosticados com algum grau de estenose aórtica e 524.342 (88,1%) não apresentavam EAo. Dentre os pacientes com EA, 48,9% foram classificados como leves, 20,6% como moderados, 17,1% como graves. Ainda, 8,2% dos pacientes foram identificados como “leves a moderados” e 5,2% “moderados a graves”. Pacientes com estenose aórtica, mesmo leve, tinham idade média maior do que aqueles sem estenose aórtica (76.1± 10.8 versus 65,3 ±15,2 anos, respectivamente).  Pacientes com EAo, especialmente mais grave, apresentavam mais doenças concomitantes, como hipertensão, fibrilação atrial e doença arterial coronariana. Em torno de 20,1% dos pacientes com EA grave apresentavam fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) <50%, comparados a apenas 14% dos pacientes sem EAo. 

 

A mortalidade por todas as causas em 4 anos, em pacientes não tratados, associada ao diagnóstico de EA de leve, moderada ou grave foi de 25,0% (intervalo de confiança [IC] 95%: 23,8%-26,1%), 33,5% (IC 95%: 31,0%-35,8%) e 44,9% (IC 95%: 39,9%-49,6%), respectivamente. Pacientes classificados com EAo leve ou moderados foram tratados em 1% ou até 11,4% dos casos em 4 anos, respectivamente. Ainda, dentre aqueles classificados como estenose aórtica “moderada a grave”, apenas 36,7% receberam tratamento comparado àqueles classificados como grave (60,7% tratados) e apresentaram taxa de mortalidade semelhantes (45,7 e 44,9%, respectivamente). Quando ajustados para idade sexo e comorbidades, todos os graus de gravidade da EA foram associados ao aumento do risco de mortalidade em pacientes não tratados ( hazard ratio [HR] 1,27, IC95% 1,15-1,40 para casos leves; HR 1,56, IC95% 1,42-1,71 para casos moderados, HR 1,95, IC1,74-2,2 para os casos “moderados a graves” e HR 2,09, IC95% 1,9-2,3 para os casos graves.)  

 

E agora?  

O reconhecimento da progressão da estenose aórtica e o seu tratamento quando grave, ainda que assintomática, já estão bem estabelecidos na literatura e são reforçados por diretrizes nacionais e internacionais. No entanto, o presente estudo traz importantes reflexões quanto aos dados contemporâneos de mundo real. O tratamento da EA grave, mesmo em um país de primeiro mundo e com fluxogramas bem estabelecidos, foi realizado em apenas 60% dos pacientes até 4 anos após o diagnóstico inicial; impactando de forma importante na mortalidade dessa população e reforçando a importância de políticas de saúde que acelerem a acessibilidade ao tratamento, seja ele cirúrgico ou por via percutânea.  

Ainda, sabe-se que o ecocardiograma é um exame simples, relativamente barato e de fácil acesso, e fundamental para confirmar o diagnóstico, avaliar gravidade, repercussões hemodinâmicas e até mesmo o prognóstico da EAo. Porém, os diagnósticos variados/intermediários (“leve a moderado”, “moderado a grave”) são comuns na prática do mundo real, muitas vezes negligenciados em sua gravidade e estão associados a mortalidade semelhante ao próximo grau de EA mais grave. Essa dificuldade é descrita pelos ecocardiografistas não somente quanto às questões técnicas de execução do exame, mas também nos quadros de baixo fluxo, baixo gradiente e redução na FEVE. Nesse sentido, é necessário treinar a classe médica para interpretação da gravidade desses resultados e para o encaminhamento precoce para seguimento especializado e tratamento cirúrgico oportunamente.  

Por fim, o risco de mortalidade com a EAo aumentou gradativamente em todo o espectro de gravidade da doença, sugerindo a necessidade de um diagnóstico acurado, associado ao acompanhamento mais próximo e às intervenções potencialmente mais precoce. Dessa forma, estudos clínicos randomizados estão sendo conduzidos para avaliar se a intervenção na menor gravidade da EAo poderia resultar em melhor sobrevida entre esses pacientes. Apesar do presente estudo tratar-se de uma análise de banco de dados por inteligência artificial com potenciais limitações ( tais como a imprecisão dos dados de prontuário, especialmente quanto à mortalidade e a variabilidade técnica na realização do ecocardiograma), ele reforça o impacto clínico e social da doença valvar aórtica e fornece informações significativas sobre os desafios na aplicação de diretrizes na comunidade, identificando áreas potenciais para diagnóstico e melhoria terapêutica. 

Referência

  1. Généreux P, Sharma RP, Cubeddu RJ et al. The Mortality Burden of Untreated Aortic Stenosis. J Am Coll Cardiol 2023;82:2101–2109.

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia