O quê?
O estudo ASSURE-DES (Aspirin Monotherapy vs No AntiplateletTherapy in Stable Patients With Coronary Stents Undergoing Low-to-Intermediate Risk Noncardiac Surgery) foi estudo randomizado, aberto, multicêntrico, com objetivo de avaliar se a manutenção de monoterapia antiplaquetária em pacientes coronariopatas com intervenção coronariana percutânea (ICP) prévia e há mais de um ano, seria eficaz e segura no contexto perioperatório de cirurgias não cardíacas de risco baixo ou intermediário.
Por quê?
Em torno de 20% dos pacientes submetidos a ICP com stent farmacológico (DES- do inglês Drug Eluting Stent) precisam de procedimentos cirúrgicos não cardiológico nos próximos 2 anos após o procedimento, apresentando um cenário clínico comum, porém desafiador, que exige o equilíbrio entre riscos trombóticos e de sangramento concorrentes. As diretrizes internacionais atuais recomendam adiar a cirurgia eletiva não cardíaca por pelo menos 6 a 12 meses após a colocação do DES, continuar a aspirina no perioperatório para prevenir a trombose do stent (mesmo após 1 ano da ICP) e suspender os inibidores P2Y12 por 5 a 7 dias antes do procedimento. Essas recomendações são baseadas em estudos observacionais que mostraram uma associação significativa entre a descontinuação prematura da terapia antiplaquetária e a trombose fatal do stent, particularmente após o implante de DES de primeira geração. Porém, inúmeras publicações em diferentes cenários têm demonstrado a segurança e o baixo risco da trombose do stent com a suspensão (mesmo precoce) e/ou a mudança do esquema antiplaquetário após implante de stents mais modernos, motivando o interesse no tema no contexto perioperatório de cirurgias não cardíacas.
Como?
No total, 1010 pacientes foram randomizados em centros na Turquia, Índia e Coréia do Sul. O estudo incluiu pacientes que receberam pelo menos um DES mais de 12 meses antes e iriam ser submetidos a uma cirurgia não cardíaca. Foram excluídos participantes com sintomas de insuficiência cardíaca (NYHA III-IV); intolerância à aspirina; necessidade de terapia anticoagulante; cirurgia cardíaca ou emergencial e risco de sangramento muito alto (por exemplo, cirurgia intracraniana, cirurgia intraespinhal, cirurgia de retina).
A terapia antiplaquetária foi descontinuada 5 dias antes da cirurgia e foi recomendada para ser retomada no máximo 48 horas após a cirurgia, a menos que contraindicada. Pacientes com monoterapia com aspirina/inibidores da P2Y12 ou dupla antiagregação plaquetária continuaram/trocaram para aspirina sozinha (5 dias antes da cirurgia não cardíaca) ou interromperam qualquer agente antiplaquetário em uma randomização 1:1.
O desfecho primário foi um composto de morte por qualquer causa, infarto do miocárdio, trombose de stent definitiva ou acidente vascular cerebral entre 5 dias antes e 30 dias após cirurgia não cardíaca. Os desfechos secundários incluíram os componentes individuais do desfecho primário e sangramento maior ou menor de acordo com a definição TIMI (Thrombolysis In Myocardial Infarction).
População: coronariopatas crônicos com ICP prévia em uso de DES, em cirurgia não cardíaca
Intervenção: manutenção da antiagregação com aspirina
Comparador: suspensão de qualquer antiagregação
Outcome: composto morte por qualquer causa, infarto do miocárdio, trombose de stent definitiva ou AVC
Tempo: 42 meses
E aí?
Dentre os 926 pacientes na população avaliada por intenção de tratar modificada (462 pacientes no grupo de monoterapia com aspirina e 464 pacientes no grupo sem terapia antiplaquetária), a idade média foi de 68,5 ± 9,0 anos, 23,9% dos pacientes eram mulheres e 44,7% tinham diabetes. Os tipos mais comuns de cirurgias foram abdominais (39,8%), ortopédicas (23,3%) e urológicas ou ginecológicas (18,7%). A maioria das cirurgias foi classificada como de risco intermediário ou baixo para eventos cardiovasculares (88,7%) e hemorrágicos (88,0%). O tempo mediano da ICP com DES para cirurgia não cardíaca foi de 5,1 anos (Q1-Q3: 2,7-9,0 anos); 87,5% dos pacientes tinham DES de segunda geração ou mais novos (mediana de 4,4 anos). Na randomização, 39,3% dos pacientes estavam em monoterapia com aspirina, 23,1% em monoterapia com inibidor P2Y12 e 34,4% estavam em terapia antiplaquetária dupla.
O desfecho composto primário ocorreu em 3 pacientes (0,6%) no grupo de monoterapia com aspirina e 4 pacientes (0,9%) no grupo sem antiplaquetária (diferença, −0,2 pontos percentuais; IC de 95%: −1,3 a 0,9; P > 0,99). Não houve trombose de stent em nenhum dos grupos.
A incidência de sangramento maior não diferiu significativamente entre os grupos (6,5% vs 5,2%; P = 0,39), enquanto sangramento menor foi significativamente mais frequente no grupo com aspirina (14,9% vs 10,1%; P = 0,027).
E agora?
Os autores do estudo, apresentado no ESC 2024 e simultaneamente publicado no JACC, concluíram que entre os pacientes submetidos à cirurgia não cardíaca de baixo a intermediário risco > 1 ano após o implante de stent, principalmente com um DES, no cenário de taxas de eventos menores do que o esperado, não conseguimos identificar uma diferença significativa entre a monoterapia com aspirina perioperatória e nenhuma terapia antiplaquetária com relação aos resultados isquêmicos ou sangramento grave.
Até o momento, as diretrizes baseavam suas recomendações nos resultados do estudo POISE-2, publicado em 2014, sobre cenário clínico semelhante. Nele, em 10.010 participantes submetidos a cirurgia não cardíaca, não necessariamente com ICP prévia, a administração de aspirina antes da cirurgia e durante o período pós-cirúrgico inicial não teve efeito significativo na taxa de um composto de morte ou infarto do miocárdio não fatal, mas aumentou o sangramento grave. No entanto, em uma análise post hoc de 470 pacientes submetidos a ICP anterior, o uso de aspirina foi associado a uma redução significativa na morte ou infarto do miocárdio, sem um aumento significativo no sangramento grave.
Os autores do ASSURE-DES, portanto, desenharam o estudo baseado em uma pergunta relevante e inédita – antiagregação perioperatória em pacientes com ICP com DES prévia. Porém o estudo apresentou grandes limitações: primeiramente, a taxa de eventos foi muito baixa, tendo ocorrido em apenas em 7 pacientes. A incidência observada do desfecho primário (0,6% no grupo de monoterapia com aspirina e 0,9% no grupo sem antiplaquetários) foi muito discordante das suposições hipotéticas utilizadas na definição do tamanho da amostra (6,0% para o grupo de monoterapia com aspirina e 11,5% para o grupo sem terapia antiplaquetária). Isso pode estar relacionado à melhora do perfil de segurança da nova geração de DES (usado em 87,5% dos pacientes) com taxas atuais muito baixas de trombose de stent, bem como ao tempo médio de ICP de 5,1 anos, o que pode ter contribuído para as taxas de eventos muito menores do que o esperado (a evidência do ASSURE-DES se aplica a pacientes com ICPs bem-sucedidas após vários anos de follow-up).
Quanto ao aumento das taxas de sangramentos menores apenas, vale lembrar que o estudo era aberto quanto ao uso da aspirina, o que poderia gerar viés na identificação e notificação de desfechos como sangramento menor. Outra questão importante é sobre a validade externa do estudo, em populações asiáticas. O impacto desse fator pode ter sido diluído ao se envolver a participantes da Índia e da Turquia, porém em pequeno número comparado à predominância dos pacientes coreanos.
Portanto, embora o estudo não tenha apresentado poder adequado para analisar a superioridade entre as duas estratégias, a taxa muito baixa de eventos reforçou o conjunto de informações de risco pequeno de eventos de trombose muito tardia (> 1 ano de ICP) com a atual geração dos stents. Estudos maiores, com pacientes de maior risco, cegamento adequado e maior diversidade étnica, poderão trazer resultados com melhor capacidade para definir a estratégia padrão para este cenário.