O quê?
O estudo FRAIL-AF (Frail atrial fibrillation) foi um estudo multicêntrico, randomizado, aberto, feito na Holanda, incluindo pacientes idosos frágeis com fibrilação atrial (FA) e uso atual de um antagonista da vitamina K (AVK). Os pacientes foram randomizados para manter o AVK versus trocar para um anticoagulante oral direto (DOAC, direct-acting oral anticoagulation).
Por quê?
Diversos estudos randomizados e meta-análises têm estudado os DOACs na FA com fatores de risco para embolia. No geral, os DOACs se associaram a um menor risco de eventos tromboembólicos e menor mortalidade em comparação aos AVK. Também se associaram com menor ocorrência de hemorragia intracraniano (HIC). Entretanto, a quantidade de pacientes idosos frágeis nestes estudos foi sub-representada, de tal modo que o benefício dos DOACs em relação aos AVK permanece incerto neste subgrupo.
Como?
O estudo incluiu pacientes idosos com idade ≥ 75 anos, FA em uso de AVK e um escore de fragilidade pela GFI (Groningen Frailty Indicator) ≥ 3. Este escore abrange características relacionadas a uso de ≥ 4 medicamentos, queixas de memória, mobilidade, visão, audição, nutrição e problemas psicossociais. Os pacientes foram randomizados para manter o AVK (foi utilizada a femprocumona) ou trocar por um DOAC, cuja escolha era de acordo com a preferência do médico assistente.
O desfecho primário do estudo foi a ocorrência de sangramento maior ou sangramento clinicamente relevante não maior pelos critérios da ISTH (International Society of Thrombosis and Hemostasis). Os desfechos secundários foram mortalidade e o composto de eventos tromboembólicos AVC, ataque isquêmico transitório ou embolia sistêmica.
Estrutura PICOT | |
Population: | Idosos frágeis com FA em uso de AVK |
Intervention | Trocar AVK por um DOAC |
Control: | Manter o AVK |
Outcome | Sangramento pela ISTH |
Time | 1 ano. |
E aí?
O estudo incluiu 1323 pacientes, sendo 662 incluídos no grupo DOAC e 661 no grupo AVK. A idade média foi de 83 anos, cerca de 40% eram do sexo feminino e metade tinham FA permanente. O escore CHADS-VASc mediano foi de 4. No grupo DOAC, o anticoagulante mais utilizado foi a rivaroxabana (50,2%) seguido da apixabana(17,4%), edoxabana (16,5%) e dabigatrana (8,6%). Os demais pacientes não foram trocados para um DOAC, apesar de randomizados para tal intervenção.
Após um seguimento médio de 344 dias, 101 (15,3%) pacientes experimentaram o desfecho primário no grupo DOAC versus 62 (9,4%) no grupo AVK (hazard ratio [HR] 1,69; intervalo de confiança [IC] 95% 1,23-2,32; P = 0,0011). O sangramento mais comumente observado no estudo foi o cutâneo (23 pacientes no grupo DOAC versus 10 no grupo AVK), seguido do orofaríngeo (10 versus 16, respectivamente). No grupo DOAC, 7 pacientes experimentaram HIC, versus 6 pacientes no grupo AVK. Já em relação ao desfecho de eventos tromboembólicos, não houve diferença entre os grupos (16 pacientes no grupo DOAC versus 13 no grupo AVK; HR 1,26; IC 95% 0,60-2,61). A mortalidade também foi a mesma comparando-se os grupos, 44 pacientes (6,7%) versus 46 (7,0%), para DOAC versus AVK, respectivamente (HR 0,96; IC 95% 0,64-1,45).
E agora?
A FA constitui um dos principais fatores de risco para AVC isquêmico no mundo, sendo a anticoagulação recomendada em pacientes de alto risco. As diretrizes atuais recomendam uma estratégia preferencial de uso de DOAC versus AVK, em virtude de ser um tratamento mais conveniente, com menos interações alimentares e medicamentosas e, principalmente, pela maior segurança sobretudo em se tratando de HIC. No entanto, o grupo de pacientes com idade avançada tem sido menos incluído nos estudos pivotais e, neste sentido, o estudo FRAIL-AF constituiu uma boa tentativa de estudar esta população. Entretanto, o estudo FRAIL-AF apresenta algumas limitações metodológicas importantes que impactam diretamente a interpretação dos resultados.
Em primeiro lugar, o estudo não teve poder algum para concluir sobre eventos isquêmicos como AVC ou embolia sistêmica. Estudos anteriores, com poder adequado para estes eventos, assim como meta-análises de dados individuais (reunindo > 70 mil pacientes), têm suportado a eficácia superior dos DOACs em relação à varfarina. Em segundo lugar, a grande maioria dos sangramentos observados no estudo foram cutâneos e orofaríngeos. Desse modo, assumindo que as conclusões deste estudo em relação a sangramento sejam válidas, parece um pouco temerário apostar nos AVK para reduzir sangramentos de pequeno potencial de impacto clínico correndo-se o risco de propiciar um risco aumentado de eventos trombóticos contra o AVK (observe o leitor que o IC 95% do desfecho trombótico ainda contempla uma redução de 40% no risco relativo com os DOACs). Vale lembrar que, pela ISTH, sangramento clinicamente relevante não maior constitui qualquer sangramento que leve a intervenção médica, incluindo a simples suspensão de dose. E por último, e o mais importante, em um estudo aberto (ou seja, aquele em que tanto os pacientes quanto os médicos sabem qual medicamento está sendo administrado), os desfechos deveriam ser avaliados por um grupo independente e cego ao tratamento randomizado. Tal prática visa a minimizar o viés de aferição, que pode ocorrer quando o conhecimento do tratamento influencia o julgamento da classificação do evento suspeito. Este tem sido o padrão em todos os estudos anteriores comparando AVK versus DOAC, mas não no FRAIL-AF. Portanto, os resultados do estudo poderiam ter sido influenciados por este viés.
Em resumo, em idosos frágeis com FA, o estudo FRAIL-AF observou um aumento de sangramentos (maioria deles de pequena gravidade) quando se trocou o AVK por um DOAC. Em virtude das limitações anteriormente expostas do presente estudo, e considerando-se as evidências anteriores de estudos com desenho melhor e tamanho amostral mais adequado, a totalidade dos dados sugere ainda a preferência pelos DOACs na maioria dos pacientes com FA e indicação de anticoagulação.