O quê?
O estudo CHAGASICS (Amiodarone or Implantable Cardioverter-Defibrillator in Chagas Cardiomyopathy: The CHAGASICS Randomized Clinical Trial) foi um ensaio clínico aberto, randomizado, com o objetivo de avaliar cardiodesfibriladores implantáveis (CDI) em comparação com amiodarona na prevenção primária de mortalidade por todas as causas e morte súbita cardíaca em pacientes com cardiomiopatia chagásica crônica.
Por quê?
A cardiomiopatia chagásica crônica (CCC) é uma doença essencialmente arritmogênica, com alta prevalência de arritmias ventriculares complexas, incluindo taquicardia ventricular não sustentada (TVNS), TV sustentada e fibrilação ventricular (FV), que é a principal causa de morte súbita cardíaca (MSC). A estratificação de risco de mortalidade na CCC pode ser estabelecida por diversos escores e, dentre os modelos disponíveis, há o escore Rassi que inclui os seguintes fatores: classes funcionais III a IV da New York Heart Association (NYHA), cardiomegalia, disfunção ventricular global e/ou segmentar à ecocardiografia, TVNS ao Holter, baixa voltagem no eletrocardiograma e sexo masculino. Um outro elemento com valor prognóstico importante seria a fibrose miocárdica avaliada por ressonância magnética cardíaca, a qual também tem sido associada à mortalidade na CCC. O uso de cardioversores-desfibriladores implantáveis (CDIs) demonstraram benfício contundente em mortalidade em pacientes selecionados com disfunção ventricular esquerda, entretanto, nenhum ensaio clínico randomizado avaliou a eficácia na população com CCC.
Como?
Os pacientes eram elegíveis para o estudo se atendessem aos seguintes critérios de inclusão: idade entre 18 e 75 anos; resultado de teste sorológico positivo documentado para doença de Chagas por pelo menos 2 métodos diferentes (hemaglutinação indireta, imunofluorescência indireta ou ensaio imunoenzimático) nos últimos 6 meses; Pontuação de risco pelo escore Rassi ≥ 10 pontos; e pelo menos 1 episódio documentado de TVNS no monitoramento Holter de 24 horas, que é definido como pelo menos 3 batimentos ventriculares ectópicos sucessivos (duração de até 30 segundos), com frequência cardíaca superior a 120 batimentos/min. Participaram do estudo pacientes de 13 centros do Brasil.
O desfecho primário foi mortalidade por todas as causas. Os desfechos secundários foram MSC, morte cardiovascular, morte por IC e hospitalização, e necessidade de implante de marcapasso ou CDI em casos de bradiarritmia grave.
Estruruta PICOT
População: cardiomiopatia chagásica crônica de moderado a alto risco de morte
Intervenção: CDI
Comparador: amiodarona
Outcome: mortalidade por todas as causas
Tempo: 3,6 anos
E aí?
O estudo planejou incluir 1100 pacientes, entretanto, teve apenas 323 pacientes randomizados (166 no grupo da amiodarona e 157 no grupo do CDI). A análise foi por intenção de tratar, com um acompanhamento médio de 3,6 (IQR, 1,8-4,4) anos (cerca de 1 ano a menos do que o planejado). Os participantes tinham idade média de 57,4 anos, quase 60% eram do sexo masculino e a fração de ejeção ventricular esquerda média foi de 37,0%. O estudo foi interrompido precocemente por questões administrativas.
O desfecho primário, mortalidade por todas as causas, foi de 38,2% no grupo CDI versus 38,6% no grupo amiodarona (hazard ratio [HR], 0,86 [IC 95%, 0,60-1,22]; P = 0,40). As taxas de MSC (6 [3,8%] vs 23 [13,9%]; HR, 0,25 [IC 95%, 0,10-0,61]; P = 0,001), bradicardia que requer estimulação (3 [1,9%] vs 27 [16,3%] ]; HR, 0,10 [IC 95%, 0,03-0,34]; P < ,001) e hospitalização por insuficiência cardíaca (14 [8,9%] vs 28 [16,9%]; HR, 0,46 [IC 95%, 0,24-0,87] ; P = 0,01) foram menores no grupo CDI em comparação com o braço amiodarona.
E agora?
Infelizmente o número de pacientes incluídos no estudo CHAGASICS foi bem abaixo do planejado e, por consequência, não permitiu gerar uma conclusão segura sobre o efeito do CDI na mortalidade por todas as causas em pacientes com cardiomiopatia chagásica crônica. Nos desfechos secundários, houve sugestão de benefício do CDI versus amiodarona em relação aos desfechos de morte súbita cardíaca, bradicardia e hospitalização por insuficiência cardíaca, o que, de certa forma, já era esperado. Importante reforçar que estes dados precisam de ser interpretados com cautela, em especial num ensaio cujo desfecho primário foi inconclusivo.
Metodologicamente, vale lembrar que, nos estudos que não atingem o número calculado de eventos, a ausência de diferença estatisticamente significativa entre os grupos, não exclui diferença clinicamente relevante; neste tipo de situação, o estudo pode não ter tido poder estatístico para detectá-la (ou seja, não dá para concluir com segurança nesta situação). De qualquer forma, apesar destas limitações, o resultado do estudo CHAGASICS está de acordo com resultados prévios em prevenção primária sobre o uso de CDI em cardiomiopatias dilatadas de outras etiologias.
Por fim, é imprescindível ressaltarmos a importância de estudos em pacientes com CCC, os quais não foram adequadamente representados em nenhum dos estudos de referência sobre insuficiência cardíaca ou sobre prevenção de morte súbita. Uma boa notícia é que o estudo PARACHUTE-HF, o maior ensaio clínico já realizado para avaliar o tratamento da insuficiência em pacientes chagásicos, já finalizou seu recrutamento e atingiu o tamanho amostral planejado. Os resultados deste estudo devem ser apresentados em 2025 e, pela primeira vez, poderemos ter dados robustos para orientar o melhor tratamento da insuficiência cardíaca nessa população tão negligenciada.