Qual é o momento ideal de revascularizar a artéria não culpada na síndrome coronária aguda? - MDHealth - Educação Médica Independente
quinta-feira nov 21, 2024

Qual é o momento ideal de revascularizar a artéria não culpada na síndrome coronária aguda?

Escrito por: Remo H. M. Furtado em 4 de maio de 2023

4 min de leitura

1. O quê?  

O estudo BIOVASC (biodegradable polymer-coated stents in patients presenting with acute coronary syndrome and multivessel disease) foi um ensaio clínico randomizado, aberto com adjudicação cega de desfechos, de não-inferioridade, que incluiu pacientes apresentando síndrome coronária aguda (SCA) e doença coronária multi-arterial 

2. Por quê?  

Em pacientes apresentando infarto com supradesnivelamento de segmento ST (IAMCSST) e doença coronária multiarterial, a revascularização completa por angioplastia coronária transluminal (ATC) com stent resultou em redução do desfecho de morte ou infarto em relação à revascularização apenas da artéria culpada, em estudos prévios. Entretanto, o momento ideal de se tratar a lesão não culpada, no mesmo procedimento ou de maneira estagiada, ainda permanece incerto.  

3. Como?  

Foram incluídos pacientes apresentando uma SCA e doença coronária multiarterial, em 29 hospitais de 4 países. Os pacientes foram randomizados para duas estratégias de revascularização: ATC de todas as lesões no mesmo procedimento inicial (ATC imediata) versus estratégia em dois tempos (ATC estagiada) em que apenas o vaso culpado era tratado na primeira intervenção e um segundo procedimento era feito na mesma internação ou em uma segunda internação eletiva pós alta em até 6 semanas. Os pacientes recebiam um stent farmacológico bioabsorvível. Pacientes com choque cardiogênico ou com história prévia de cirurgia de revascularização do miocárdio foram excluídos.  

O desfecho primário do estudo foi o composto de morte, infarto, acidente vascular cerebral (AVC) ou necessidade de revascularização não-planejada em 1 ano. Em uma análise exploratória pré-especificada, o desfecho primário foi analisado em 30 dias. O estudo utilizou um desenho de não-inferioridade da estratégia ATC imediata versus ATC estagiada. Diante disso, a não-inferioridade seria declarada se a extremidade do intervalo de confiança (IC) 95% do hazard ratio (HR) para o desfecho primário não excedesse 1,39 contra o grupo ATC imediata. Traduzindo, se ambos os grupos tivessem o mesmo resultado (ou seja, HR = 1,0), mas o IC 95% ultrapassasse aquele limite (por exemplo, se o IC 95% fosse 0,70-1,50), não se poderia concluir não-inferioridade (preste atenção com muita calma nesse conceito para entender o estudo).   

Estrutura PICOT 

Population: Pacientes com SCA com ou sem supra de ST e doença coronária multiarterial    

Intervention: Angioplastia de múltiplos vasos imediata   

Control: Angioplastia estagiada (artéria culpada imediata seguida dos demais vasos em um segundo procedimento)    

Outcome: Composto de morte, infarto, acidente vascular cerebral (AVC) ou necessidade de revascularização não-planejada 

Time: 1 ano   

   

4. E aí?   

Ao todo, 1525 pacientes foram incluídos  (cerca de 40% IAMCSST), sendo 764 randomizados para o grupo ATC imediata e 761 para o grupo ATC estagiada. A maioria dos pacientes (cerca de 80%) apresentavam doença biarterial e o restante tinha doença triarterial. Ao final de um ano, 7,6% dos pacientes apresentaram o desfecho primário no grupo ATC imediata versus 9,4% no grupo ATC estagiada (HR 0,78; IC 95% 0,55-1,11; P para não inferioridade = 0,0011; P para superioridade = 0,17). Quando se consideraram somente  os eventos nos primeiros 30 dias, a ATC imediata se associou a uma redução no desfecho primário (2,2% versus 5,8% de pacientes com eventos, respectivamente; HR 0,38; IC 95% 0,22-0,66). Também houve uma menor ocorrência de infarto em um ano no grupo ATC imediata(1,9% versus 4,5%, respectivamente; HR 0,41; IC 95% 0,22-0,76), mas não houve diferença na mortalidade (1,9% versus 1,2%; HR 1,56; IC 95% 0,68-3,61). Houve um menor tempo mediano de hospitalização no grupo ATC imediata versus o grupo ATC estagiada (3 versus 4 dias, respectivamente; P < 0,0001). Não houve diferença entre os grupos na ocorrência de sangramento maior nem de trombose de stent.   

5. E agora?  

Em um estudo de não-inferioridade, procura-se testar um novo tratamento em relação a um tratamento padrão com o objetivo de avaliar se o tratamento novo tem eficácia semelhante. Este tipo de desenho ocorre quando o novo tratamento traz uma potencial vantagem sobre o tratamento convencional, como menor custo, maior segurança ou maior conveniência. No presente estudo, o tratamento sob teste, ATC imediata, provou-se não-inferior (traduzindo: eficácia similar) ao tratamento convencional, ou seja, a ATC em dois tempos (estagiada). No desfecho primário, não houve superioridade da ATC imediata, embora pareça ter ocorrido uma menor incidência de infarto, um dos desfechos secundários. Resta a pergunta: afinal, qual é a vantagem teórica que a ATC imediata poderia trazer sobre a ATC em dois tempos? Talvez a resposta tenha sido a alta mais precoce do paciente (um dia a menos de hospitalização). A publicação em questão não mostrou resultados de análises de custo-efetividade, o que seria muito bem vindo em publicações secundárias (vamos aguardar). Por enquanto, podemos levar para a prática clínica as seguintes mensagens: 1) revascularizar sempre que possível todas as lesões coronárias obstrutivas em pacientes com SCA, e não somente a culpada; 2) o tempo ideal da realização destes procedimentos dependerá da rotina de cada serviço, porém a ATC imediata é uma estratégia segura, potencialmente benéfica no curto prazo e oferece um potencial de alta mais precoce em relação à ATC em dois tempos.  

 

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Referência

  1. Diletti R, den Dekker WK, Bennett J, Schotborgh CE, van der Schaaf R, Sabaté M, Moreno R, Ameloot K, van Bommel R, Forlani D, van Reet B, Esposito G, Dirksen MT, Ruifrok WPT, Everaert BRC, Van Mieghem C, Elscot JJ, Cummins P, Lenzen M, Brugaletta S, Boersma E, Van Mieghem NM; BIOVASC Investigators. Immediate versus staged complete revascularisation in patients presenting with acute coronary syndrome and multivessel coronary disease (BIOVASC): a prospective, open-label, non-inferiority, randomised trial. Lancet. 2023 Apr 8;401(10383):1172-1182. 

Sobre o autor

Remo H. M. Furtado

Diretor de Pesquisa do BCRI, Coordenador da Pós-graduação em Pesquisa Clínica da Galen Academy e Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da USP