1. O quê?
O estudo BIOVASC (biodegradable polymer-coated stents in patients presenting with acute coronary syndrome and multivessel disease) foi um ensaio clínico randomizado, aberto com adjudicação cega de desfechos, de não-inferioridade, que incluiu pacientes apresentando síndrome coronária aguda (SCA) e doença coronária multi-arterial.
2. Por quê?
Em pacientes apresentando infarto com supradesnivelamento de segmento ST (IAMCSST) e doença coronária multiarterial, a revascularização completa por angioplastia coronária transluminal (ATC) com stent resultou em redução do desfecho de morte ou infarto em relação à revascularização apenas da artéria culpada, em estudos prévios. Entretanto, o momento ideal de se tratar a lesão não culpada, no mesmo procedimento ou de maneira estagiada, ainda permanece incerto.
3. Como?
Foram incluídos pacientes apresentando uma SCA e doença coronária multiarterial, em 29 hospitais de 4 países. Os pacientes foram randomizados para duas estratégias de revascularização: ATC de todas as lesões no mesmo procedimento inicial (ATC imediata) versus estratégia em dois tempos (ATC estagiada) em que apenas o vaso culpado era tratado na primeira intervenção e um segundo procedimento era feito na mesma internação ou em uma segunda internação eletiva pós alta em até 6 semanas. Os pacientes recebiam um stent farmacológico bioabsorvível. Pacientes com choque cardiogênico ou com história prévia de cirurgia de revascularização do miocárdio foram excluídos.
O desfecho primário do estudo foi o composto de morte, infarto, acidente vascular cerebral (AVC) ou necessidade de revascularização não-planejada em 1 ano. Em uma análise exploratória pré-especificada, o desfecho primário foi analisado em 30 dias. O estudo utilizou um desenho de não-inferioridade da estratégia ATC imediata versus ATC estagiada. Diante disso, a não-inferioridade seria declarada se a extremidade do intervalo de confiança (IC) 95% do hazard ratio (HR) para o desfecho primário não excedesse 1,39 contra o grupo ATC imediata. Traduzindo, se ambos os grupos tivessem o mesmo resultado (ou seja, HR = 1,0), mas o IC 95% ultrapassasse aquele limite (por exemplo, se o IC 95% fosse 0,70-1,50), não se poderia concluir não-inferioridade (preste atenção com muita calma nesse conceito para entender o estudo).
Estrutura PICOT
Population: Pacientes com SCA com ou sem supra de ST e doença coronária multiarterial
Intervention: Angioplastia de múltiplos vasos imediata
Control: Angioplastia estagiada (artéria culpada imediata seguida dos demais vasos em um segundo procedimento)
Outcome: Composto de morte, infarto, acidente vascular cerebral (AVC) ou necessidade de revascularização não-planejada
Time: 1 ano
4. E aí?
Ao todo, 1525 pacientes foram incluídos (cerca de 40% IAMCSST), sendo 764 randomizados para o grupo ATC imediata e 761 para o grupo ATC estagiada. A maioria dos pacientes (cerca de 80%) apresentavam doença biarterial e o restante tinha doença triarterial. Ao final de um ano, 7,6% dos pacientes apresentaram o desfecho primário no grupo ATC imediata versus 9,4% no grupo ATC estagiada (HR 0,78; IC 95% 0,55-1,11; P para não inferioridade = 0,0011; P para superioridade = 0,17). Quando se consideraram somente os eventos nos primeiros 30 dias, a ATC imediata se associou a uma redução no desfecho primário (2,2% versus 5,8% de pacientes com eventos, respectivamente; HR 0,38; IC 95% 0,22-0,66). Também houve uma menor ocorrência de infarto em um ano no grupo ATC imediata(1,9% versus 4,5%, respectivamente; HR 0,41; IC 95% 0,22-0,76), mas não houve diferença na mortalidade (1,9% versus 1,2%; HR 1,56; IC 95% 0,68-3,61). Houve um menor tempo mediano de hospitalização no grupo ATC imediata versus o grupo ATC estagiada (3 versus 4 dias, respectivamente; P < 0,0001). Não houve diferença entre os grupos na ocorrência de sangramento maior nem de trombose de stent.
5. E agora?
Em um estudo de não-inferioridade, procura-se testar um novo tratamento em relação a um tratamento padrão com o objetivo de avaliar se o tratamento novo tem eficácia semelhante. Este tipo de desenho ocorre quando o novo tratamento traz uma potencial vantagem sobre o tratamento convencional, como menor custo, maior segurança ou maior conveniência. No presente estudo, o tratamento sob teste, ATC imediata, provou-se não-inferior (traduzindo: eficácia similar) ao tratamento convencional, ou seja, a ATC em dois tempos (estagiada). No desfecho primário, não houve superioridade da ATC imediata, embora pareça ter ocorrido uma menor incidência de infarto, um dos desfechos secundários. Resta a pergunta: afinal, qual é a vantagem teórica que a ATC imediata poderia trazer sobre a ATC em dois tempos? Talvez a resposta tenha sido a alta mais precoce do paciente (um dia a menos de hospitalização). A publicação em questão não mostrou resultados de análises de custo-efetividade, o que seria muito bem vindo em publicações secundárias (vamos aguardar). Por enquanto, podemos levar para a prática clínica as seguintes mensagens: 1) revascularizar sempre que possível todas as lesões coronárias obstrutivas em pacientes com SCA, e não somente a culpada; 2) o tempo ideal da realização destes procedimentos dependerá da rotina de cada serviço, porém a ATC imediata é uma estratégia segura, potencialmente benéfica no curto prazo e oferece um potencial de alta mais precoce em relação à ATC em dois tempos.
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