O quê?
O estudo Donors after Circulatory Death Heart Trial foi um estudo randomizado, aberto, de não-inferioridade, que comparou a utilização de coração de doadores pós parada circulatória versus doadores pós morte encefálica em pacientes receptores de um transplante cardíaco.
Por quê?
A insuficiência cardíaca acomete quase 1 milhão de pessoas somente nos Estados Unidos e tem mortalidade muito elevada, comparável à de um câncer metastático. O transplante cardíaco uma estratégia capaz de prolongar a sobrevida e melhorar bastante a qualidade de vida destes pacientes, entretanto a baixa disponibilidade de doadores ainda é um fator limitante para que este procedimento alcance a todos que precisam. Neste sentido, estratégias visando ao aumento da quantidade de doadores são bastante bem-vindas, como por exemplo utilizar órgãos que sofreram uma parada circulatória, porém foram preservados com soluções de perfusão.
Como?
O estudo randomizou 297 pacientes em lista de espera para um transplante cardíaco para receberem o órgão de um doador que sofreu parada circulatória versus de doadores pós morte encefálica. No caso de parada circulatória, o coração a ser doado era preservado por meio de um sistema extracorpóreo de perfusão e preservação. Para ser viável, o órgão a ser doado deveria apresentar função normal e os níveis de lactato do doador deveriam permanecer estáveis. Os pacientes foram randomizados na proporção 3:1 para os grupos doador pós parada circulatória versus pós morte encefálica. Os pacientes randomizados para o primeiro grupo poderiam receber o órgão de um doador pós morte encefálica, uma vez que não seria ético negar um órgão viável a alguém em fila de transplante cardíaco. O oposto não era permitido. Os pacientes eram analisados conforme o tratamento que recebiam, independente do grupo ao qual foram randomizados (análise conforme tratado).
O desfecho primário do estudo era sobrevida em 6 meses, sendo a hipótese de que o grupo doador pós parada circulatória seria não-inferior ao grupo pós morte encefálica, utilizando para isso uma margem de não-inferioridade de 20% de diferença absoluta. Isso significa que o intervalo de confiança (IC) deveria excluir uma redução absoluta de 20 pontos percentuais na sobrevida no grupo doador pós parada circulatória em relação ao grupo doador pós morte encefálica.
Estrutura PICOT | |
Population: | Pacientes com insuficiência cardíaca avançada em fila de transplante cardíaco |
Intervention | Doador pós parada circulatória |
Control: | Doador pós morte encefálica |
Outcome | Sobrevida |
Time | 6 meses |
E aí?
Dos 297 pacientes randomizados, 226 foram alocados no grupo doador pós parada circulatória e 71 no grupo doador pós morte encefálica. Um total de 117 pacientes foram excluídos da análise por diversas razões (como não ter recebido o transplante ou morte na fila), sendo 74 no primeiro grupo e 43 no segundo. Dos 152 pacientes que permaneceram no grupo doador pós parada circulatória, 62 receberam o coração de um doador pós morte encefálica e portanto foram incluídos no outro grupo na análise. Ao final, 90 pacientes foram analisados em cada grupo. A idade média dos pacientes do grupo doador pós parada circulatória era menor e este grupo também tinha pacientes em menor status de gravidade na lista de espera comparados ao grupo doador pós morte encefálica.
Ao final de 6 meses, a sobrevida no grupo doador pós parada circulatória foi de 94% versus 90% no grupo pós morte encefálica (diferença média – 3 pontos percentuais; IC 90% – 10 a 3; P < 0,001 para não-inferioridade). A porcentagem de órgãos viáveis após parada circulatória foi de 89%. Houve uma maior proporção de disfunção de enxerto moderada a grave no grupo doador pós parada circulatória em relação ao grupo doador pós morte encefálica (22% versus 10%, respectivamente), porém sem aumento nos casos de necessidade de re-transplante.
E agora?
O transplante cardíaco é uma terapia salvadora e milhões de pacientes no mundo podem se beneficiar deste procedimento, de tal modo que estratégias que possam melhorar seu alcance e resultados são muito bem-vindas. Nesse sentido, o presente estudo foi inovador no sentido de testar a estratégia do uso de doador pós parada circulatória em um ensaio clínico randomizado, procurando gerar o melhor nível de evidência disponível. No entanto, o estudo tem diversas limitações metodológicas que podem impactar na conclusão dos seus achados.
Em primeiro lugar, quando se desenha um estudo de não-inferioridade, procuramos excluir um malefício inaceitável com o novo tratamento, dado pela chamada margem de não-inferioridade. Esta margem significa que, no pior dos cenários (leia-se: intervalo de confiança), o novo tratamento ainda perderia para o tratamento tradicional por uma diferença clinicamente razoável. Pergunta: seria aceitável um novo tratamento que levasse a uma sobrevida em 6 meses 20 pontos percentuais abaixo do tratamento padrão? Provavelmente não. Em segundo lugar, os autores utilizaram um intervalo de confiança de 90%, ao invés do tradicional 95%, provavelmente por utilizarem um erro tipo 1 (alfa) unicaudal de 5%, ao invés de 2,5%, como seria o recomendado neste tipo de estudo. Em terceiro lugar, embora a análise conforme tratado seja aceitável em estudos de não-inferioridade como análise de sensibilidade, a análise por intenção de tratar ainda é a única que preserva o benefício da randomização. Por isto, ainda que seja um estudo randomizado, os dois grupos apresentavam diversas diferenças nas características basais, o que torna a interpretação dos resultados bastante complicada.
Pelas razões expostas, a utilização de corações de doadores pós parada circulatória para transplante cardíaco é uma estratégia potencialmente promissora e que pode ajudar a salvar muitas vidas no mundo. Entretanto, a comprovação da eficácia e segurança dessa alternativa por meio de evidências robustas ainda necessita de mais estudos.