O quê?
O estudo Computed Tomography Cardiac Angiography Before Invasive Coronary Angiography in Patients With Previous Bypass Surgery: The BYPASS-CTCA Trial foi um estudo randomizado, aberto, em um centro único, que avaliou o benefício do uso da angiotomografia computadorizada de coronária (ATCC) de forma adjunta à cinecoronariografia para pacientes previamente revascularizados. O objetivo principal era avaliar a possível prevenção de complicações relacionadas à estratificação invasiva relacionadas às dificuldades técnicas no exame diagnóstico de pacientes previamente submetidos a cirurgia de revascularização miocárdica (CRM).
Por quê?
A cinecoronariografia em pacientes revascularizados cirurgicamente pode ser desafiadora. Isso ocorre devido ao número aumentado de vasos (leitos nativos e enxertos) a serem estudados, à localização variável dos óstios das pontes e, muitas vezes, às informações incompletas disponíveis quanto ao número e tipo de enxertos realizados. Nessa população existe uma grande preocupação quanto ao risco aumentado de complicações (como por exemplo, acidente vascular cerebral [AVC] e nefropatia induzida por contraste [NIC]) em comparação a pacientes sem CRM prévia. Por isso, é imprescindível o desenvolvimento de estratégias para facilitar a realização de cinecoronariografia diagnóstica com maior eficiência e segurança nos pacientes cirurgicamente revascularizados.
Como?
Pacientes previamente submetidos a CRM que haviam sido referenciados para a realização de cinecoronariografia diagnóstica (eletiva ou por de síndrome coronariana aguda -SCA- sem supra) foram randomizados 1:1 para realização ATCC previamente à cinecoronariografia (grupo ATCC + cine) ou para cinecoronariografia somente. Nos casos eletivos, a ATCC deveria ser realizada em média duas semanas antes da estratificação invasiva. Os laudos das tomografias coronarianas deveriam descrever a anatomia dos enxertos, a localização de seus óstios e a presença de doença aterosclerótica.
O desfecho primário foi uma análise co-primária que consistiu em: 1) duração da cinecoronariografia (definida como o intervalo entre administração de anestesia para obtenção de acesso vascular e remoção do último cateter), 2) escores de satisfação do paciente após o procedimento invasivo e 3) a incidência de nefropatia induzida por contraste (aumento ≥0,3 mg/dl na creatinina em 48 horas ou 1,5 vezes em 1 semana – KDIGO). A análise desses desfechos também foi feita de forma ajustada para creatinina basal e o diagnóstico de SCA. As análises primárias foram apresentadas com intervalos de confiança de 98,3%, e um valo p<0,017 foi considerado estatisticamente significativo (para preservar α = 5% dividido em 3 pontos finais co-primários usando o método de ajuste de Bonferroni).
Como desfechos secundários, os autores avaliaram a taxa de uso de acesso radial, a quantidade de contraste por cinecoronariografia (em mililitros), a exposição à radiação, o número de cateteres usado no procedimento e a quantidade de enxertos não adequadamente identificada. Além disso, de forma exploratória, foram avaliadas complicações clínicas diretamente relacionadas ao procedimento de angioplastia como: dissecção aórtica ou coronariana; infarto agudo do miocárdio (IAM) periprocedimento, AVC, eventos cardiovasculares maiores (MACE – major adverse cardiovascular events) e desfechos renais maiores.
Estrutura PICOT
Population: Pacientes previamente submetidos a CRM
Intervention: ATCC seguida de cinecoronariografia diagnóstica
Control: cinecoronariografia diagnóstica
Outcome: co-primário de incidência de NIC, duração da cinecoronariografia e grau de satisfação do paciente após a mesma
Time: 12 meses
E aí?
Foram randomizados 688 pacientes entre 2018 e 2021. A idade média dos participantes foi de 69,8 anos e a maioria (84%) era do sexo masculino. No braço ATCC, 22 pacientes não realizaram cinecoronariografia por decisão do médico assistente, após avaliação da ATCC. O tempo médio entre a ATCC e o diagnóstico invasivo foi de 7 dias no grupo de pacientes eletivos por angina estável (que representaram 55% do total). A mediana de tempo entre a CRM e os procedimentos do estudo foi de 12 anos (IQR 5,7-19,2) e, como descrito acima, em 24% dos casos a descrição cirúrgica, bem como os detalhes quanto ao número de enxertos e sua localização, eram desconhecidos. Em torno de 40% dos pacientes tinha diagnóstico de doença renal crônica, definido com taxa de filtração glomerular < 60ml/min/1,73m2 ao entrarem no estudo.
Houve uma redução no tempo médio de duração do procedimento (18,6 ± 9,5 minutos versus 39,5 ± 16,9 minutos; P<0,001) para ATCC + cine versus cinecoronariografia isolada, respectivamente. O escore de satisfação dos pacientes (sendo 1=muito bom e 5= muito ruim) também foi melhor no grupo combinado (1,5 ± 0,6) versus isolado (2,5 ± 1,0), com IC 98.33%, −1,2 a −0.9; P<0.001). A avaliação da função renal pós-angiografia foi realizada em 615 pacientes, sendo observada redução significativa da NIC no grupo combinado com ATCC em comparação com o grupo da cinecoronariografia isolada (3,4% versus 27,9%; OR (odds ratio) 0,09 [IC 98,33%, 0,04–0,2]; P<0,001). Todos os resultados descritos acima mantiveram consistência após os ajustes pré-determinados.
A incidência de complicações do procedimento foi menor no grupo combinado com ATCC (2,3% versus 10,8%; OR 0,2 [IC 95%, 0,1 a 0,4]; p<0,001) motivada especialmente por redução nas complicações de acesso vascular, já que o acesso por via radial foi realizado em 76,9% dos pacientes do grupo ATCC + cine versus 56,7% no grupo cinecoronariografia isolada (p <0,001). O volume de contraste (77,4 ± 49,1 vs 173 ± 68 mL; p<0,001) foi menor no grupo ATTC + cine, mesmo quando somado o contraste usado no exame não invasivo (148,9±50,6 vs 173,0 ± 68,0 mL; p<0,001). Por outro lado, a mediana da dose eficaz total de radiação combinada nos dois procedimentos (ATCC + cine) foi maior do que no grupo isolado de angiografia (2,6; IIQ, 1,8–3,9 mSv; p<0,001). As taxas de IAM periprocedimento, MACE e desfechos renais maiores em 1 ano também foram menores no grupo da ATCC.
E agora?
A estratificação invasiva propedêutica para avaliação de sintomas isquêmicos em pacientes previamente submetidos a CRM pode ser desafiadora, mesmo em mãos mais experientes. O presente estudo randomizado demonstrou que o uso da angiotomografia coronariana como ferramenta complementar e facilitadora para a cinecoronariografia não só pode reduzir o tempo do procedimento invasivo bem como a incidência de NIC e melhorar a satisfação do paciente após o procedimento.
O principal papel benéfico do ATCC previamente à cinecoronariografia nessa população é fornecer informações sobre o número e localização das pontes de safena e, principalmente se elas estão patentes ou ocluídas. Isto potencialmente evita a busca de enxertos, reduzindo o volume de contraste necessário durante o procedimento invasivo e, portanto, a incidência de NIC. É importante ressaltar que os autores reconhecem que a taxa de NIC relacionada à cinecoronariografia isolada (27,9%) foi mais alta do que o que é comumente descrito na literatura. Porém, os dados de estudos anteriores sobre lesão renal por contraste frequentemente não incluiam o estudo diagnóstico de pontes na angiografia.
A ATCC permitiu ainda um melhor planejamento na execução da angiografia. O conhecimento prévio do número de enxertos a ser cateterizado, assim como da patência e grau de doença da artéria mamária interna esquerda pode facilitar o uso do acesso radial direito, evitando a necessidade de acesso femoral.
Algumas restrições podem ser apontadas quanto à estratégia associada de angiotomografia coronariana e cinecoronariografia na prática: a disponibilidade de uma visita adicional do paciente ao serviço de saúde; além do tempo necessário para a realização do exame (que demanda preparo, punção venosa, controle de frequência cardíaca) e até mesmo o custo de um procedimento adicional ( para o paciente, as operadoras de saúde ou o sistema público pagador), nem sempre disponível ou acessível em todos os serviços de saúde. Obviamente, todas essas questões devem ser contrabalanceadas aos potenciais benefícios que a prevenção das complicações (sobretudo NIC) podem trazer e, idealmente, estudadas por meio de avaliações objetivas de custo-efetividade. O estudo deve ser visto, ainda, à luz de suas limitações, por se tratar de protocolo não-cego e que reflete a prática de um único centro. Porém, em centros com viabilidade e logística para realização de angiotomografia coronariana complementar, essa técnica pode ser considerada em casos específicos e se mostra segura e potencialmente eficaz.