O quê?
Uma análise secundária do estudo ROC CCC (Resuscitation Outcomes Consortium – Trial of Continuous Compressions versus Standard CPR in Patients with Out-of-Hospital Cardiac Arrest) avaliou a associação entre a qualidade da ventilação com bolsa-valva-máscara e os desfechos clínicos em pacientes vítimas de parada cardiorrespiratória (PCR) extra-hospitalar (1).
Por quê?
As diretrizes de ressuscitação da AHA (American Heart Association) recomendam a compressão torácica como prioridade número um em pacientes adultos vítimas de PCR extra-hospitalar. Além disso, as diretrizes também sugerem ser razoável a compressão torácica isolada, sobretudo por socorristas não familiarizados com as técnicas de ventilação com bolsa-valva-máscara. Tais recomendações se baseiam no fato de a ventilação potencialmente levar a interrupções desnecessárias das compressões e também pelo fato de a ventilação teoricamente ocupar um papel secundário em situações de redução extrema do débito cardíaco, como ocorre durante a RCP. Entretanto, a associação entre a qualidade da ventilação com bolsa-valva-máscara e a maior probabilidade de retorno à circulação espontânea (RCE) ainda era pouco compreendida.
Como?
O estudo ROC CCC foi um estudo randomizado em cluster, multicêntrico, internacional. Em estudos em cluster, são randomizadas as unidades de atendimento (no caso, os SME – Serviços Médicos de Emergência), e não os pacientes. Os SME foram randomizados para RCP com compressão torácica contínua versus a RCP tradicional com compressões alternando com ventilação com bolsa-valva-máscara numa relação 30:2. No estudo principal, não houve benefício do grupo compressões torácicas contínuas versus RCP tradicional no aumento da sobrevida ou RCE (2).
A presente sub-análise incluiu somente pacientes do braço RCP tradicional que tiveram a qualidade da ventilação monitorada por dispositivos de bioimpedância. Os pacientes foram divididos em dois grupos: o grupo com ventilação com bolsa-valva-máscara satisfatória em ≥ 50% do tempo versus o grupo com ventilação com bolsa-valva-máscara adequada em < 50%. O desfecho principal desta publicação foi a probabilidade de sobrevida à alta hospitalar, sendo a probabilidade de RCE e sobrevida sem sequela neurológica à alta os desfechos secundários.
Estrutura PECOT | |
Population: | PCR extra-hospitalar em RCP |
Exposition: | Ventilação com bolsa-valva-máscara adequada |
Control: | Ventilação com bolsa-valva-máscara inadequada |
Outcome | Sobrevida |
Time | Alta hospitalar |
E aí?
Dos 15.250 pacientes randomizados para o grupo RCP tradicional do estudo principal, 1976 tiveram a monitorização da qualidade ventilação e foram incluídos nesta sub-análise. Destes, 1177 (60%) tiveram ventilação inadequada. Os pacientes que tiveram ventilação com bolsa-valva-máscara adequada, em relação aos que não tiveram, eram com mais frequência do sexo feminino (38,1% versus 31,7%; P = 0,003) e apresentavam menor frequência de PCR em assistolia (39,9% versus 50,3%; P < 0,001), embora a idade média fosse semelhante entre os grupos (64,9 versus 65,8 anos; P = 0,24). (Nota do editor: os valores de P não foram providenciados no artigo, e sim calculados por nós para mostrar aos nossos leitores).
Após ajustes para co-variáveis, a ventilação com bolsa-valva-máscara adequada se associou à maior probabilidade de sobrevida à alta em comparação à ventilação inadequada (13,5% versus 4,1%, respectivamente; razão de risco [RR] 2,2; intervalo de confiança [IC] 95% 1,6-3,0; P < 0,0001). A ventilação com bolsa-valva-máscara adequada também se associou à maior probabilidade de RCE (44,9% versus 29,3%; RR 1,3; IC 1,2-1,5) e de sobrevida à alta com bom status neurológico (10,6% versus 2,4%; RR 2,8; IC 95% 1,8-4,3).
E agora?
A RCP imediata e de boa qualidade, além da desfibrilação precoce para ritmos chocáveis e acesso rápido ao suporte avançado, são fatores substanciais para aumentar a sobrevida na PCR extra-hospitalar. Os treinamentos em suporte básico de vida (SBV) sempre têm enfatizado bastante a qualidade das compressões torácicas (“push hard and fast”), porém pouca ênfase tem sido dada à qualidade das ventilações antes da inserção de via aérea avançada. Os dados aqui apresentados podem levantar uma mudança de conceito nas práticas e treinamento em RCP.
As preocupações de a ventilação com bolsa-valva-máscara poder atrapalhar as compressões e com isso reduzir a pressão de perfusão coronária vêm muito mais de modelos pré-clínicos do que de dados robustos de evidência em humanos. Seria intuitivo admitir que, mesmo em situações de débito cardíaco muito baixo, como na RCP (em que compressões de qualidade conseguem manter no máximo 30% do débito), alguma ventilação é necessária para adequar o fornecimento de oxigênio aos tecidos. No presente estudo, uma boa ventilação se associou a cerca de duas vezes maior probabilidade de sobrevida à alta e quase três vezes maior sobrevida com bom status neurológico.
Os resultados desse estudo devem ser interpretados, no entanto, à luz de algumas limitações metodológicas importantes. Como em qualquer análise observacional, a associação entre a exposição (boa ventilação) e desfecho pode ser simplesmente explicada por confundidores não mensurados. O fato de maior quantidade de pacientes em assistolia no grupo que recebeu ventilação inadequada pode sugerir maior gravidade destes pacientes, ou simplesmente pior qualidade no atendimento, com menor tempo de resposta à RCP inicial. Além disso, os autores não levaram em conta no modelo estatístico a não independência entre os pacientes pertencentes ao mesmo centro, com isso levando a inferências incorretas (e possivelmente conclusões inadequadas). Apesar dessas limitações, o estudo traz contribuições relevantes.
Em resumo, durante a RCP, sobretudo executada por profissionais de saúde treinados, a boa ventilação deve ser almejada assim como a compressão torácica adequada, na proporção 30 compressões para 2 ventilações, com pausas nas compressões enquanto uma via aérea avançada ainda não estiver disponível.