Angioplastia versus tratamento clínico: estudo COURAGE e suas implicações após 15 anos - MDHealth - Educação Médica Independente
terça-feira nov 19, 2024

Angioplastia versus tratamento clínico: estudo COURAGE e suas implicações após 15 anos

Escrito por: Remo H. M. Furtado em 24 de janeiro de 2024

4 min de leitura

O quê?  

O estudo COURAGE (Clinical Outcomes Utilizing Revascularization and Aggressive Drug Evaluation) foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, aberto com avaliação cega de desfechos, avaliando intervenção coronária percutânea (ICP) associada ao tratamento clínico otimizado versus tratamento clínico otimizado isolado em pacientes com doença arterial coronária (DAC).  

 

Por quê?  

A ICP é um dos procedimentos cardiológicos mais realizados no mundo. Em pacientes com síndrome coronária aguda (SCA), sobretudo infarto com supra de ST, seu papel está bem estabelecido na redução de mortalidade e outros eventos cardiovasculares. Já na DAC crônica, embora a ICP possa levar a maior alívio dos sintomas e melhora na qualidade de vida, seu papel na redução de eventos “duros” permanece incerto 

 

Como?  

O estudo COURAGE incluiu pacientes em 50 centros dos Estados Unidos e Canadá pertencentes ao sistema do Veterans Administration. Os pacientes elegíveis deveriam ter DAC documentada e obstrução de pelo menos 70%, com angina ou demonstração de isquemia em teste não invasivo. Pacientes com angina CCS (Canadian Cardiovascular Society) IV, isquemia grave no teste ergométrico ou fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) < 30% foram excluídos. Na época do estudo, os stents farmacológicos ainda não eram disponíveis até os 6 meses finais da inclusão, de modo que a maioria dos pacientes foram tratados com stents convencionais.  

O desfecho primário foi o composto de morte por qualquer causa ou infarto não-fatal. O composto de morte, infarto, AVC ou hospitalização por angina instável foi um desfecho secundário.  

 

Estrutura PICOT 
Population:  Pacientes com DAC crônica    
Intervention:   ICP       
Control:  Tratamento clínico    
Outcome  Morte ou infarto  
Time  4,6 anos    

 

E aí?  

Um total de 2287 pacientes foram incluídos, sendo 1149 randomizados para ICP e 1138 para tratamento clínico. Dos pacientes randomizados para ICP, 46 não foram submetidos ao procedimento. 204 pacientes tiveram perda de seguimento (107 no grupo ICP e 97 no grupo tratamento clínico). A idade média foi de 61,5 anos, 85% eram do sexo masculino e 86% da raça branca. Cerca de um terço apresentavam diabetes e cerca de 80% apresentavam angina CCS 0-II. Cerca de um terço apresentavam lesão na artéria descendente anterior (DA) proximal e 30% eram tri-arteriais.  

A incidência cumulativa estimada em 4,6 anos do desfecho primário foi de 19,0% no grupo ICP versus 18,5% no grupo tratamento clínico (hazard ratio [HR] 1,05; intervalo de confiança [IC] 95% 0,87-1,27; P = 0,62). A mortalidade foi semelhante em ambos os grupos (incidência cumulativa em 4,6 anos de 7,6% versus 8,3%, respectivamente; HR 0,87; IC 95% 0,65-1,16). Não houve diferença estatisticamente significativa na ocorrência de infarto (13,2% versus 12,3%; HR 1,13; IC 95% 0,89-1,43), embora numericamente tenham ocorrido mais infartos periprocedimento no grupo ICP (35 versus 9), e menos infartos espontâneos (108 versus 119) em comparação ao tratamento clínico. A necessidade de novo procedimento de revascularização foi menor no grupo ICP (21,1% versus 32,6%; HR 0,60; IC 95% 0,51-0,71). Não houve diferença entre os grupos na incidência de AVC ou de angina instável. Os resultados foram consistentes em diversos subgrupos conforme anatomia, FEVE, presença de diabetes ou de infarto prévio (P-interação > 0,10).  

 

E agora?  

O estudo COURAGE tem levantado bastante controvérsia desde sua publicação em 2007, em virtude de seus resultados relativamente contrários ao senso comum. A ICP não resultou em redução de morte, infarto ou angina instável, embora tenha se associado a menor necessidade de nova revascularização. Os resultados foram observados independente da presença de doença multi-arterial ou de disfunção ventricular esquerda.  

Os resultados do estudo devem ser interpretados à luz de algumas limitações. Em primeiro lugar, trata-se de um estudo feito somente em dois países, embora os achados do estudo ISCHEMIA, publicado mais de uma década depois, confirmem este achado em uma população mais diversa. Em segundo lugar, a avaliação do desfecho de infarto seguiu critérios que hoje não seriam mais utilizados, definindo infarto periprocedimento com base na mesma elevação de biomarcadores que o infarto espontâneo. Em terceiro lugar, a ocorrência de perda de seguimento em cerca de 10% dos pacientes pode levar a viés, pois o motivo da perda pode ser exatamente um desfecho do estudo (seriam os pacientes perdidos justamente os que morreram e a morte foi o motivo da perda de seguimento?). Em quarto lugar, somente 31 pacientes receberam stents farmacológicos, em virtude da baixa disponibilidade na época.  Apesar de tais limitações, o estudo foi um marco na Cardiologia e muitos de seus achados ainda se aplicam atualmente.  

Hoje, mais de 15 anos após sua publicação, o estudo COURAGE traz lições importantes. A principal delas é que, na DAC crônica, o tratamento clínico, com modificações de estilo de vida, tratamento dos fatores de risco e medicações que atuem sobre a história natural da aterotrombose, é o principal pilar. Nos casos de angina não responsiva a medicamentos, a ICP é muito bem-vinda no sentido de melhora da qualidade de vida.  

Referência

  1. Boden WE, O’Rourke RA, Teo KK, Hartigan PM, Maron DJ, Kostuk WJ, Knudtson M, Dada M, Casperson P, Harris CL, Chaitman BR, Shaw L, Gosselin G, Nawaz S, Title LM, Gau G, Blaustein AS, Booth DC, Bates ER, Spertus JA, Berman DS, Mancini GB, Weintraub WS; COURAGE Trial Research Group. Optimal medical therapy with or without PCI for stable coronary disease. N Engl J Med. 2007; 356(15):1503-16. 

Sobre o autor

Remo H. M. Furtado

Diretor de Pesquisa do BCRI, Coordenador da Pós-graduação em Pesquisa Clínica da Galen Academy e Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da USP