O quê?
O estudo ARTESIA (Apixaban for Stroke Prevention in SubClinical Atrial Fibrillation) foi um ensaio clínico randomizado, duplo cego e duplo mascarado (double-dummy), testando o uso do anticoagulante oral direto apixabana versus aspirina em pacientes com episódios de fibrilação atrial subclínica detectada por dispositivos de monitorização contínua como marcapassos ou cardiodesfibriladores implantáveis (CDI).
Por quê?
A fibrilação atrial (FA) é uma das principais causas de acidente vascular cerebral (AVC), especialmente entre pacientes idosos. Os antagonistas da vitamina K e os anticoagulantes orais de ação direta (DOACs, direct-acting oral anticoagulants) reduzem o risco de AVC em pacientes com FA clínica, ao mesmo tempo em que aumentam o risco de sangramento. A FA subclínica (FASC), descrita pelo presente estudo como episódios com duração entre 6 minutos e 24 horas, que geralmente são assintomáticos, tem sido frequentemente detectada por dispositivos implantáveis de monitorização contínua e de longo prazo, como marcapasso e CDI atuais. Nos pacientes com esse achado, a prevenção dos eventos tromboembólicos por meio da anticoagulação não é bem definida.
Como?
O estudo incluiu pacientes com FA subclínica detectada por dispositivos implantados, com idade ≥ 55 anos e CHA2DS2-VASc ≥ 3. Pacientes com histórico de FA documentado em eletrocardiograma (ECG), outras indicações para anticoagulação, uso de dupla antiagregação plaquetária, história de sangramento maior não corrigido ou taxa de filtração glomerular ≤ 25ml/minuto foram excluídos.
Os pacientes foram randomizados para apixabana 5 mg via oral 2 vezes ao dia ou 2,5 mg via oral 2 vezes ao dia (se 2 dos 3 fatores: peso corpóreo ≤ 60kg, creatinina>1,5mg/dl ou idade ≥80 anos) versus aspirina 81mg, 1 vez ao dia. O uso da aspirina de forma aberta era permitido, porém não recomendável.
O desfecho primário de eficácia foi um composto de AVC (avaliado também conforme sua gravidade pela escala de Rankin) ou embolia sistêmica. O desfecho primário de segurança foi sangramento grave, como definido pela Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH), os quais também foram classificados conforme sua gravidade e evolução clínica. Os desfechos adicionais analisados incluíram mortalidade por causa específica, tipo de AVC, presença de ataque isquêmico transitório (AIT) com déficit motor, afasia ou duração maior que 5 minutos.
Estrutura PICOT | |
Population: | Pacientes com FA subclinica detectada em dispositivos implantáveis |
Intervention | Apixabana 5mg, 2 vezes ao dia |
Control: | Aspirina 81mg, 1 vez ao dia |
Outcome | Eficácia: AVC ou embólica sistêmica
Segurança: sangramento grave pelo ISTH |
Time | 3,5 anos |
E aí?
Ao todo, foram incluídos um total de 4012 pacientes (2015 no grupo apixabana e 1997 no grupo aspirina). A idade média era de 77 anos, 36% dos pacientes eram do sexo feminino e 94,2% eram brancos, sendo 37% com infarto agudo do miocárdio (IAM) prévio, 9% com AVC prévio e 8,3% com doença arterial obstrutiva periférica. A média do CHA2DS2‐VASc score foi de 3,9 ± 1,1, sendo que mais de 60% dos pacientes apresentavam pontuação ≥ 4. A maioria dos pacientes (69,4%) teve os episódios de FASC detectados via marcapasso implantável nos 6 meses que antecederam a randomização, sendo que 63,7% apresentaram de 1 a 5 episódios e 35% tinham a duração mais longa entre 1 e 6 horas ( mediana 1,47; intervalo interquartil 0,20 a 4,95) A apixabana ou a aspirina foram descontinuados permanentemente durante o seguimento devido ao desenvolvimento de FASC com duração superior a 24 horas ou FA clínica em 490 pacientes (24,3%) no grupo apixabana e 476 pacientes (23,8% ) no grupo aspirina.
Na análise por intenção de tratar, o desfecho primário de eficácia ocorreu em 55 pacientes do grupo apixabana (0,78% por paciente-ano) versus em 86 pacientes no grupo aspirina (1,24% por paciente-ano) ( hazard ratio [HR] 0,63; intervalo de confiança [IC] 95% 0,45 a 0,88; P = 0,007). Diferenças semelhantes entre grupos foram observadas no AVC isquêmico (incluindo AVC de causa desconhecida) (HR 0,62; IC 95%, 0,43 a 0,91) e no AVC de qualquer causa (HR 0,64; IC 95%, 0,46 a 0,90). Houve redução no número de AVC incapacitante ou fatal (avaliado pela escala de Rankin modificada entre 3-6) no grupo apixabana (33%) quando comparado ao grupo aspirina (43%) (HR 0.51; IC 95%, 0,29 a 0,88). Não houve diferença no número de mortes entre os dois grupos.
O risco de sangramento foi avaliado pela análise pré-especificada de pacientes “on treatment” e, conforme esperado, foi de 1,71% por paciente-ano com apixabana e 0,94% por paciente-ano com aspirina (HR 1,80; IC95% 1,26 a 2,57; P = 0,001). Esses eventos foram motivados especialmente por sangramento do trato gastrointestinal (HR 1,76; IC95% 1.13–2.74), sem diferença entre os grupos quanto aos sangramentos fatais, hemorragia intracraniana ou necessidade de transfusão.
E agora?
O estudo ARTESIA trouxe resposta importantes para um quadro clínico cada vez mais frequente e negligenciado na prática médica: a FA subclínica. Apesar de mais comum no consultório do arritmologista, por ser detectada pela monitorização do marcapasso ou CDI, sabe-se hoje que, em pacientes idosos com um fator de risco adicional, a taxa de FASC pode chegar a 34% ao ano. No presente estudo, observou-se que esse fato pode estar associado não só a uma taxa de AVC de 1,24% por paciente-ano no grupo não anticoagulado, mas também a um número expressivo (até 45%) de AVC incapacitante ou que resulta em morte. Quando avaliamos o aumento (esperado) dos sangramentos no desfecho de segurança, é importante lembrarmos que os AVC envolvem perda permanente de tecido cerebral e sequelas incapacitantes, enquanto hemorragias graves foram, no estudo, em sua maioria foram reversíveis, permitindo recuperação completa dos pacientes.
O ARTESIA demonstrou uma redução na taxa de AVC e embolia sistêmica de 37% com o uso da apixabana comparada à aspirina. Esse resultado foi consistente nas análises por intenção de tratar e por protocolo. Porém, nesse contexto, o recente estudo NOAH-AFNET 6 em pacientes com Episódios de Alta Frequência Atrial (EAFA) tam,bém detectados por dispositivos implantados, não observou diferença estatisticamente significativa no desfecho composto de morte cardiovascular, AVC ou embolia sistêmica entre o grupo edoxabana versus placebo. Importante salientar que o NOAH-AFNET foi interrompido precocemente, após análise interina, por futilidade, com apenas 184 eventos. Em uma meta-análise recente, publicada concomitantemente ao ARTESIA, os autores concluíram que os resultados dos ensaios NOAH-AFNET 6 e ARTESiA são consistentes entre si e fornecem evidências de alta qualidade de que a anticoagulação oral com edoxabana ou apixabana reduz o risco de AVC em pacientes com FASC, às custas do aumenta o risco de sangramento grave.
Portanto, à luz das atuais evidências sobre o tema, a mensagem é que devemos individualizar riscos e benefícios e considerar, com evidente consistência científica, a anticoagulação em pacientes com FA subclínica. Tais resultados deverão, provavelmente, ser incorporados às diretrizes futuras, valendo ainda uma boa discussão sobre como triar os pacientes que não usam dispositivos implantáveis e quais os escores de risco de sangramento seriam válidos para essa população (DOAC escore? HAS-BLED?). Por ora, nas palavras do autor, devemos buscar o “sweet spot”, com adequada indicação do tratamento para pacientes com CHA2DS2-VASc elevado (pelo menos maior que 3), e/ou AVC prévio contabalanceada a um risco de sangramento adequado.