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terça-feira out 8, 2024

Anticoagulação com apixabana em pacientes com fibrilação atrial subclínica

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 21 de novembro de 2023

5 min de leitura

O quê?  

O estudo ARTESIA (Apixaban for Stroke Prevention in SubClinical Atrial Fibrillation) foi um ensaio clínico randomizado, duplo cego e duplo mascarado (double-dummy), testando o uso do anticoagulante oral direto apixabana versus aspirina em pacientes com episódios de fibrilação atrial subclínica detectada por dispositivos de monitorização contínua como marcapassos ou cardiodesfibriladores implantáveis (CDI). 

 

Por quê?  

A fibrilação atrial (FA) é uma das principais causas de acidente vascular cerebral (AVC), especialmente entre pacientes idosos. Os antagonistas da vitamina K e os anticoagulantes orais de ação direta (DOACs, direct-acting oral anticoagulants) reduzem o risco de AVC em pacientes com FA clínica, ao mesmo tempo em que aumentam o risco de sangramento. A FA subclínica (FASC), descrita pelo presente estudo como episódios com duração entre 6 minutos e 24 horas, que geralmente são assintomáticos, tem sido frequentemente detectada por dispositivos implantáveis de monitorização contínua e de longo prazo, como marcapasso e CDI atuais. Nos pacientes com esse achado, a prevenção dos eventos tromboembólicos por meio da anticoagulação não é bem definida.  

 

Como?  

O estudo incluiu pacientes com FA subclínica detectada por dispositivos implantados, com idade ≥ 55 anos e CHA2DS2-VASc ≥ 3. Pacientes com histórico de FA documentado em eletrocardiograma (ECG), outras indicações para anticoagulação, uso de dupla antiagregação plaquetária, história de sangramento maior não corrigido ou taxa de filtração glomerular ≤ 25ml/minuto foram excluídos.  

Os pacientes foram randomizados para apixabana 5 mg via oral 2 vezes ao dia ou 2,5 mg via oral 2 vezes ao dia (se 2 dos 3 fatores: peso corpóreo ≤ 60kg, creatinina>1,5mg/dl ou idade ≥80 anos) versus aspirina 81mg, 1 vez ao dia. O uso da aspirina de forma aberta era permitido, porém não recomendável. 

O desfecho primário de eficácia foi um composto de AVC (avaliado também conforme sua gravidade pela escala de Rankin) ou embolia sistêmica. O desfecho primário de segurança foi sangramento grave, como definido pela Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH), os quais também foram classificados conforme sua gravidade e evolução clínica. Os desfechos adicionais analisados incluíram mortalidade por causa específica, tipo de AVC, presença de ataque isquêmico transitório (AIT) com déficit motor, afasia ou duração maior que 5 minutos. 

 

Estrutura PICOT 
Population:   Pacientes com FA subclinica detectada em dispositivos implantáveis      
Intervention   Apixabana 5mg, 2 vezes ao dia   
Control:   Aspirina 81mg, 1 vez ao dia 
Outcome   Eficácia: AVC ou embólica sistêmica 

Segurança: sangramento grave pelo ISTH 

Time   3,5 anos 

 

E aí?   

Ao todo, foram incluídos um total de 4012 pacientes (2015 no grupo apixabana e 1997 no grupo aspirina). A idade média era de 77 anos, 36% dos pacientes eram do sexo feminino e 94,2% eram brancos, sendo 37% com infarto agudo do miocárdio (IAM) prévio, 9% com AVC prévio e 8,3% com doença arterial obstrutiva periférica.  A média do CHA2DS2‐VASc score foi de 3,9 ± 1,1, sendo que mais de 60% dos pacientes apresentavam pontuação ≥ 4. A maioria dos pacientes (69,4%) teve os episódios de FASC detectados via marcapasso implantável nos 6 meses que antecederam a randomização, sendo que 63,7% apresentaram de 1 a 5 episódios e  35% tinham a duração mais longa entre 1 e 6 horas ( mediana 1,47; intervalo interquartil 0,20 a 4,95) A apixabana ou a aspirina foram descontinuados permanentemente durante o seguimento devido ao desenvolvimento de FASC com duração superior a 24 horas ou FA clínica em 490 pacientes (24,3%) no grupo apixabana e 476 pacientes (23,8% ) no grupo aspirina. 

Na análise por intenção de tratar, o desfecho primário de eficácia ocorreu em 55 pacientes do grupo apixabana (0,78% por paciente-ano) versus em 86 pacientes no grupo aspirina (1,24% por paciente-ano) ( hazard ratio [HR] 0,63; intervalo de confiança [IC] 95% 0,45 a 0,88; P = 0,007). Diferenças semelhantes entre grupos foram observadas no AVC isquêmico (incluindo AVC de causa desconhecida) (HR 0,62; IC 95%, 0,43 a 0,91) e no AVC de qualquer causa (HR 0,64; IC 95%, 0,46 a 0,90). Houve redução no número de AVC incapacitante ou fatal (avaliado pela escala de Rankin modificada entre 3-6) no grupo apixabana (33%) quando comparado ao grupo aspirina (43%) (HR 0.51; IC 95%, 0,29 a 0,88). Não houve diferença no número de mortes entre os dois grupos. 

O risco de sangramento foi avaliado pela análise pré-especificada de pacientes “on treatment” e, conforme esperado, foi de 1,71% por paciente-ano com apixabana e 0,94% por paciente-ano com aspirina (HR 1,80; IC95% 1,26 a 2,57; P = 0,001). Esses eventos foram motivados especialmente por sangramento do trato gastrointestinal (HR 1,76; IC95% 1.13–2.74), sem diferença entre os grupos quanto aos sangramentos fatais, hemorragia intracraniana ou necessidade de transfusão. 

 

E agora?  

O estudo ARTESIA trouxe resposta importantes para um quadro clínico cada vez mais frequente e negligenciado na prática médica: a FA subclínica. Apesar de mais comum no consultório do arritmologista, por ser detectada pela monitorização do marcapasso ou CDI, sabe-se hoje que, em pacientes idosos com um fator de risco adicional, a taxa de FASC pode chegar a 34% ao ano. No presente estudo, observou-se que esse fato pode estar associado não só a uma taxa de AVC de 1,24% por paciente-ano no grupo não anticoagulado, mas também a um número expressivo (até 45%) de AVC incapacitante ou que resulta em morte. Quando avaliamos o aumento (esperado) dos sangramentos no desfecho de segurança, é importante lembrarmos que os AVC envolvem perda permanente de tecido cerebral e sequelas incapacitantes, enquanto hemorragias graves foram, no estudo, em sua maioria foram reversíveis, permitindo recuperação completa dos pacientes. 

O ARTESIA demonstrou uma redução na taxa de AVC e embolia sistêmica de 37% com o uso da apixabana comparada à aspirina. Esse resultado foi consistente nas análises por intenção de tratar e por protocolo.  Porém, nesse contexto, o recente estudo NOAH-AFNET 6 em pacientes com Episódios de Alta Frequência Atrial (EAFA) tam,bém detectados por dispositivos implantados, não observou diferença estatisticamente significativa no desfecho composto de morte cardiovascular, AVC ou embolia sistêmica entre o grupo edoxabana versus placebo. Importante salientar que o NOAH-AFNET foi interrompido precocemente, após análise interina, por futilidade, com apenas 184 eventos.  Em uma meta-análise recente, publicada concomitantemente ao ARTESIA, os autores concluíram que os resultados dos ensaios NOAH-AFNET 6 e ARTESiA são consistentes entre si e fornecem evidências de alta qualidade de que a anticoagulação oral com edoxabana ou apixabana reduz o risco de AVC em pacientes com FASC, às custas do aumenta o risco de sangramento grave. 

Portanto, à luz das atuais evidências sobre o tema, a mensagem é que devemos individualizar riscos e benefícios e considerar, com evidente consistência científica, a anticoagulação em pacientes com FA subclínica. Tais resultados deverão, provavelmente, ser incorporados às diretrizes futuras, valendo ainda uma boa discussão sobre como triar os pacientes que não usam dispositivos implantáveis e quais os escores de risco de sangramento seriam válidos para essa população (DOAC escore? HAS-BLED?). Por ora, nas palavras do autor, devemos buscar o “sweet spot”, com adequada indicação do tratamento para pacientes com CHA2DS2-VASc elevado (pelo menos maior que 3), e/ou AVC prévio contabalanceada a um risco de sangramento adequado. 

Referência

  1. Healey JS, Lopes RD, Granger CB, Alings M, Rivard L, McIntyre WF, Atar D, Birnie DH, Boriani G, Camm AJ, Conen D, Erath JW, Gold MR, Hohnloser SH, Ip J, Kautzner J, Kutyifa V, Linde C, Mabo P, Mairesse G, Benezet Mazuecos J, Cosedis Nielsen J, Philippon F, Proietti M, Sticherling C, Wong JA, Wright DJ, Zarraga IG, Coutts SB, Kaplan A, Pombo M, Ayala-Paredes F, Xu L, Simek K, Nevills S, Mian R, Connolly SJ; ARTESIA Investigators. Apixaban for Stroke Prevention in Subclinical Atrial Fibrillation. N Engl J Med. 2023 Nov 12. doi: 10.1056/NEJMoa2310234. Epub ahead of print. 

    McIntyre WF, Benz AP, Becher N, Healey JS, Granger CB, Rivard L, Camm AJ, Goette A, Zapf A, Alings M, Connolly SJ, Kirchhof P, Lopes RD. Direct Oral Anticoagulants for Stroke Prevention in Patients with Device-Detected Atrial Fibrillation: A Study-Level Meta-Analysis of the NOAH-AFNET 6 and ARTESiA Trials. Circulation. 2023 Nov 12. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.123.067512. Epub ahead of print.  

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia

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