O quê?
O estudo STOP CA (Statins to Prevent the Cardiotoxicity of Anthracyclines) foi um ensaio clínico randomizado, duplo-cego, multicêntrico, avaliando o efeito da atorvastatina na prevenção de disfunção do ventrículo esquerdo (VE) induzida por antraciclinas em pacientes com linfoma, realizado nos Estados Unidos e Canadá.
Por quê?
A cardiotoxicidade é uma complicação frequentemente relacionada a alguns quimioterápicos, sobretudo os agentes do grupo das antraciclinas. Este efeito deletério pode levar a consequências graves como insuficiência cardíaca, arritmias e morte. A cardiotoxicidade costuma ocorrer mais comumente com aumento da dose cumulativa do quimioterápico, sendo por este motivo o risco maior em neoplasias cujo tratamento utiliza doses mais elevadas, como é o caso dos linfomas. Em virtude de seus efeitos pleotrópicos na inflamação e redução do estresse oxidativo, as estatinas poderiam ser agentes úteis para mitigar a lesão cardíaca causada pelas antraciclinas, sendo tal hipótese avaliada no estudo STOP CA.
Como?
O estudo incluiu pacientes com diagnóstico de linfoma e indicação de quimioterapia com antraciclinas. Os pacientes eram randomizados para receber atorvastatina 40 mg uma vez ao dia versus placebo, sendo o tratamento iniciado logo antes da quimioterapia e mantido por 12 meses. Pacientes já com indicação de uso de qualquer estatina (como por exemplo, devido a dislipidemia, diabetes ou doença coronária) eram excluídos. Os pacientes eram avaliados com imagens de ressonância magnética cardíaca (RMC) antes da randomização e após 12 meses para avaliação da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE). Em virtude da pandemia de COVID-19, o protocolo também permitia que, em casos selecionados, os pacientes tivessem a FEVE avaliada por ecocardiograma.
O desfecho primário do estudo foi a proporção de pacientes apresentando queda de 10 ou mais pontos percentuais da FEVE após 12 meses para valores inferiores a 55%. A diferença entre as quedas de FEVE nos dois grupos do estudo foram avaliadas como desfecho exploratório, assim como a ocorrência de insuficiência cardíaca clinicamente manifesta.
Estrutura PICOT | |
Population: | Pacientes com linfoma recebendo antraciclinas |
Intervention | Atorvastatina 40 mg |
Control: | Placebo |
Outcome | Proporção de queda da FEVE > 10% |
Time | 12 meses |
E aí?
O estudo incluiu 300 pacientes (150 em cada grupo), com idade média de 50 anos e sendo cerca de metade do sexo feminino e a grande maioria (90%) eram da raça branca. Ao redor de um quarto dos pacientes tinham linfoma de Hodgkin como neoplasia que qualificou para inclusão no estudo. A FEVE média na randomização era de 63%, e a dose média cumulativa programada de antraciclina era de 264 mg/m2 (em doses equivalentes de doxorrubicina). Um total de 286 pacientes completaram o estudo com duas medidas de FEVE (basal e 12 meses).
O desfecho primário de queda da FEVE > 10 pontos percentuais ocorreram em 22% dos pacientes no grupo placebo versus 9% no grupo atorvastatina (odds ratio [OR] para queda da FEVE = 2,90; intervalo de confiança [IC] 95% 1,40-6,40; P = 0,002). A redução média de FEVE em 12 meses foi de 5,4 pontos percentuais no grupo placebo versus 4,1 no grupo atorvastatina (diferença média = 1,3 pontos percentuais; P = 0,03). Dos pacientes avaliados no estudo, 23% tiveram a segunda medida de FEVE avaliada por ecocardiograma ao invés de RMC, porém os resultados se mantiveram consistentes mesmo após a exclusão destes pacientes. Um total de 4 (3%) eventos de insuficiência cardíaca sintomática ocorreram no grupo atorvastatina versus 9 (6%) no grupo placebo (P = 0,67). Não houve aumento de eventos adversos com o uso da atorvastatina em relação ao placebo, incluindo nenhum aumento de mialgia ou hepatoxicidade.
E agora?
Terapias capazes de mitigar a lesão cardíaca induzida por antraciclinas têm sido uma necessidade clínica não atendida. Esta necessidade torna-se mais importante ainda com o sucesso das terapias antineoplásicas em prolongar a sobrevida dos pacientes com câncer, de tal maneira que outras intercorrências, como doença cardiovascular (incluindo aquela induzida pelo próprio tratamento), podem impactar no prognóstico destes pacientes. Dessa forma, o estudo STOP-CA traz resultados potencialmente relevantes para a prática clínica. Porém, seriam estes resultados robustos o suficiente para mudar as rotinas assistenciais e as diretrizes vigentes? Vamos antes de mais nada ressaltar alguns pontos importantes.
O desfecho primário escolhido no estudo, embora esteja razoavelmente alinhado a algumas definições de cardiotoxicidade, procurou dicotomizar uma variável contínua. Este fenômeno é a chamada “falácia da dicotomização”, e até faz sentido como forma de reforçar a importância clínica de um achado (afinal, é muito mais empolgante falar ao seu colega “o tratamento reduz em 2,5 vezes a probabilidade de queda da FEVE!” do que “o tratamento leva uma atenuação da queda da FEVE 1,3 pontos percentuais menores em relação ao placebo”). No entanto, do ponto de vista metodológico, a análise primária do estudo deve ser focada na variável contínua. Isso porque, a dicotomização de um dado contínuo cria impressões artificiais como, por exemplo, a de que alguém com idade de 64 anos seja muito diferente de alguém com 66 anos (caso o ponto de corte da dicotomização fosse 65 anos). Moral da história: o principal achado deste estudo, e como a interpretação dele deve ser conduzida, seria “A redução média de FEVE em 12 meses foi de 5,4 pontos percentuais no grupo placebo versus 4,1 no grupo atorvastatina (diferença média = 1,3 pontos percentuais; P = 0,03)”.
Segundo ponto, embora a queda da FEVE seja um bom marcador futuro de progressão para sintomas de insuficiência cardíaca, o fato de um determinado tratamento melhorar a FEVE não significa necessariamente que o mesmo tratamento vai resultar em impacto sobre o desfecho clinicamente relevante. Esta é outra falácia comum em pesquisa, chamada de “falácia do desfecho substituto”, quando um determinado biomarcador ou exame de imagem é assumido como indicativo indireto do benefício clínico. A fim de avaliar definitivamente se o uso de atorvastatina 40 mg seria um tratamento adequado para prevenir a cardiotoxicidade por antraciclinas, o ideal seria termos um estudo maior com poder adequado para a avaliação de desfechos clinicamente relevantes, como morte cardiovascular, hospitalização ou visita urgente por insuficiência cardíaca e arritmias clinicamente relevantes.
Neste momento, a esperança por medidas capazes de prevenir a cardiotoxicidade continua, sendo as estatinas, medicamentos seguros, amplamente utilizados em cardiologia e atualmente com custo acessíveis, uma potencial ferramenta. Afinal de contas, nós jamais gostaríamos de ver nossos pacientes portadores de neoplasias malignas sucumbirem em decorrência da própria medicação que levou à cura do tumor.