Betabloqueador após infarto do miocárdio em pacientes com fração de ejeção preservada: estudo REDUCE-MI - MDHealth - Educação Médica Independente
terça-feira nov 19, 2024

Betabloqueador após infarto do miocárdio em pacientes com fração de ejeção preservada: estudo REDUCE-MI

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 15 de abril de 2024

6 min de leitura

O quê? 

O estudo Beta-Blockers after Myocardial Infarction and Preserved Ejection Fraction foi um ensaio clínico randomizado, baseado em um banco de dados, aberto,  que avaliou o impacto do uso do betabloqueador versus placebo, com início até 1 semana após um infarto agudo do miocárdio (IAM) na redução de novo IAM ou morte por todas as causas (1).  

 

Por quê? 

Apesar da clássica indicação em diretrizes globalmente, o uso rotineiro do betabloqueador após o infarto agudo do miocárdio é baseado em estudos que precediam a atual era de terapêuticas de reperfusão e do uso de medicações classicamente modificadoras de sua morbi-mortalidade como os antiagregantes plaquetários inibidores P2Y12 e as estatinas de alta potência. Além disso, dados de registros do mundo real ( Real World Evidence – RWE), como o SWEDENHEART (Swedish Web-system for Enhancement and Development of Evidence-based care in Heart disease Evaluated According to Recommended Therapies) ou o coreano KAMIR-NIH (Korea Acute Myocardial Infarction Registry-National Institute of Health) sugeriram neutralidade em desfechos cardiovasculares com o uso dos betabloqueadores em pacientes com fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) preservada (≥50%) pós IAM (2,3). Portanto, considerando a problemática contemporânea da polifarmácia na prática clínica e a importância da desprescrição quando possível, compreender o verdadeiro impacto clínico dos betabloqueadores nesse cenário era imprescindível. 

 

Como? 

O estudo, prospectivo, aberto, de grupos paralelos, baseado em registo, foi conduzido em três países: Suécia (38 centros), Estônia (1 centro) e Nova Zelândia (6 centros). Os critérios de inclusão foram diagnósticos de IAM tipo 1, com elevação de ST ou IM sem elevação de ST, entre 1 e 7 dias após o evento, com angiografia coronária realizada durante a internação e documentação de estenose ≥ 50%, FFR ≤ 0,80 ou iFR ≤ 0,89 e ecocardiograma com FEVE ≥50%. Foram excluídos pacientes com contraindicação ao uso de betabloqueadores como bloqueios atrioventriculares (BAV), asma, entre outros ou aqueles que à critério do investigador teriam necessidade de uso de betabloqueador. Os pacientes no grupo betabloqueador deveriam receber preferencialmente metoprolol ou bisoprolol, com metas diárias de 100mg e 5mg, respetivamente. 

O desfecho primário de eficácia foi um composto de mortes por todas as causas ou um novo IAM. Os desfechos secundários incluíram, além da análise individualizada de morte e IAM, as internações por fibrilação atrial ou insuficiência cardíaca. Também foram avaliados desfechos de segurança como hospitalizações por bradicardia, hipotensão, síncope, acidente vascular cerebral, evoluções para BAV de alto grau, necessidade de marcapasso, internação por asma ou doença pulmonar obstrutiva cronica, angina, entre outras. 

Durante o estudo, em virtude da baixa taxa de eventos agregada (3% ao ano), os investigadores reajustaram o cálculo amostral, inicialamente baseada na hipótese redução relativa de risco do desfecho primário de 16,7%, para uma redução de 25%, do betabloqueador em relação ao grupo controle. Assim, para detectar esta magnitude de efeito, com um poder de 80%, o estudo precisaria de 379 eventos do desfecho primário.   

 

Estrutura PICOT  

Population: IAM tipo 1 com FEVE≥50%  

Intervention:  betabloqueador  

Control:  cuidado usual sem betabloqueador  

Outcome morte ou reinfarto  

Time 3,5 anos 

 

E aí? 

Foram incluídos 5020 pacientes, com idade média de 65 anos, predominantemente homens (77,5%), 46,2% hipertensos, 14% diabéticos, sendo que 95,5% foram submetidos a intervenção coronariana percutânea. Os pacientes receberam terapia médica otimizada com estatina (98,5%), aspirina (97,4%) e 95,8% receberam alta com algum antiagregante plaquetário inibidor da P2Y12. A maioria dos pacientes tinham lesão coronariana em vaso único (55,4%) e somente 7,1% tinham IAM prévio. 

Após 3,5 anos de acompanhamento, o desfecho primário ocorreu em 407 pacientes, correspondendo a 7,9% dos pacientes do grupo betabloqueador versus 8,3% daqueles designados para o grupo não-beta bloqueador (hazard ratio [HR] 0,96; intervalo de confiança [IC] 95% 0,79 a 1,16; P = 0,64). Além disso, o tratamento com betabloqueadores não foi associado a menor incidência cumulativa de eventos secundários de eficácia ou a aumento dos desfechos de segurança (como internação por bradicardia, asma, entre outros) e nem a alterações nos sintomas de angina ou insuficiência cardíaca. O resultado para o desfecho primário foi consistente em todos os subgrupos, inclusive naqueles pacientes admitidos com IAM já em uso prévio de betabloqueador. 

 

E agora? 

A plausibilidade biológica que embasa o uso dos betabloqueadores no pós-IAM é rica e complexa. Em pacientes com IAM, o sistema nervoso simpático geralmente é ativado em resposta à dor torácica, ansiedade e alteração da função cardíaca. Fisiologicamente, ativação dos receptores adrenérgicos beta-1 aumenta a frequência cardíaca do nó sinoatrial e a contratilidade do miocárdio, resultando em aumento do débito cardíaco e da pressão arterial. Entretanto, a ativação adrenérgica prolongada exacerba a isquemia miocárdica, aumentando a demanda de oxigênio, além de provocar arritmias ventriculares. Os betabloqueadores reduzem não somente o risco de arritmia pós IAM, mas também o consumo de oxigênio pelo miocárdio, além de aumentar o tempo de enchimento coronariano ao prolongar o tempo diastólico. Porém, atualmente não temos evidências de que esses possíveis desfechos substitutos correspondam a redução em desfechos clínicos. 

O estudo REDUCE-MI tem grande importância ao avaliar esse ponto, em um contexto em que a prevenção secundária após síndrome coronariana aguda baseia-se em estudos contemporâneos e com impactos importantes em redução de IAM de repetição, necessidade de revascularização e até mortalidade cardiovascular. Contrariando seus antecessores e as diretrizes sobre o tema, o estudo não observa benefício no uso rotineiro do betabloqueador em pacientes de baixo risco, uniarteriais, com função ventricular preservada e em um país no qual a terapia de reperfusão ocorre precocemente (apesar do tempo não ter sido apresentado no artigo). Essas características de menor risco dos pacientes impactaram no próprio desenho do estudo, que teve de ser reavaliado após a observação de baixa taxa (menos da metade prevista pelos autores). 

O estudo deve ser interpretado à luz de algumas ponderações. Por se tratar de um estudo não cego, ao final do seguimento de 1 ano, pelo menos 18% do grupo betabloqueador haviam parado de tomar a medicação, bem como 14% havia iniciado o uso do mesmo, estando no grupo controle. A análise de subgrupo avaliou a consistência dos resultados somente quanto ao uso prévio de betabloqueador, o que sugere que a adequabilidade da análise estatística por intenção de tratar, nesse caso, pode ter enviesado o resultado para a nulidade. Por fim, apesar do uso realístico de pacientes pertencentes a registros clínicos, como vem sendo feito pelo grupo SWEDENHEART, a perda de seguimento e a falha na triagem de desfechos não-hospitalares (como sintomas de síncope, bradicardia sem internação, baixa capacidade para o exercício físico, entre outros) torna questionável a validade interna do estudo. 

Por isso, à luz das atuais evidências e frente ao desejo de “desprescrever” os pacientes em prevenção secundária, melhorando a sua aderência medicamentosa, sugerimos cautela e observação. Pacientes de menor risco talvez possam receber alta sem uso de betabloqueador e IECA/BRA (que também têm suas indicações clássicas como pós-IAM com FEVE reduzida, IAM anterior, hipertensão arterial sistemica, diabetes mellitus, doença renal, entre outros), desde que adequadamente reperfundidos e em uso de estatina e antiagregação plaquetária otimizada. Pelo menos 5 estudos de caráter randomizado estão em andamento com publicação prevista para os próximos dois anos e prometem trazer dados mais robustos e consistentes para esse cenário.  

Referências

  1. Yndigegn T, Lindahl B, Mars K, et al. Beta-blockers after myocardial infarction and preserved ejection fraction. N Engl J Med. DOI: 10.1056/NEJMoa2401479

  2. Ishak D, Aktaa S, Lindhagen L, et al. Association of beta-blockers beyond 1 year after myocardial infarction and cardiovascular outcomes. Heart 2023;109:1159-1165. 

  3. Joo SJ, Kim SY, Choi JH, Park HK, Beom JW, Lee JG, et al. Effect of beta-blocker therapy in patients with or without left ventricular systolic dysfunction after acute myocardial infarction. Eur Heart J Cardiovasc Pharmacother. 2021;7:475–82.

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia