Candesartana e carvedilol na prevenção de cardiotoxicidade induzida por antraciclinas - MDHealth - Educação Médica Independente
terça-feira nov 19, 2024

Candesartana e carvedilol na prevenção de cardiotoxicidade induzida por antraciclinas

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 5 de outubro de 2023

5 min de leitura

O quê? 

O estudo CARE (High-Sensitivity Cardiac Troponin I–Guided Combination Angiotensin Receptor Blockade and Beta Blocker Therapy to Prevent Cardiac Toxicity in Cancer Patients Receiving Anthracycline Chemotherapy) foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, aninhado em um estudo de coorte observacional que avaliou: 1) se o monitoramento da troponina de alta sensibilidade identifica precocemente os pacientes em risco para disfunção ventricular esquerda (DVE) durante a quimioterapia com antraciclina; e 2) se o tratamento com candesartana e carvedilol (guiado por alterações na troponina) reduz o risco de cardiotoxicidade. 

 

Por quê? 

A cardiotoxicidade é uma complicação comumente associada ao uso de agentes quimioterápicos do grupo das antraciclinas. Porém, a progressão da lesão ao músculo cardíaco no momento da quimioterapia até o desenvolvimento da insuficiência cardíaca clínica ainda é pouco compreendida. Além disso, a eficácia dos tratamentos potencialmente cardioprotetores, em especial a associação de fármacos que bloqueiam o eixo neuro-hormonal, não está bem estabelecida. Portanto, o estudo CARE avaliou a acurácia da troponina cardíaca como marcador de risco para desenvolver DVE durante quimioterapia com antraciclina e a eficácia do uso da candesartana associada ao carvedilol na redução do risco de cardiotoxicidade por meio da avaliação da função ventricular. 

Como? 

 O estudo avaliou homens e mulheres acima de 18 anos, portadores de câncer de mama ou linfoma não-Hodgkin, que seriam submetidos a quimioterapia com uso de antracilcinas. Os pacientes deveriam ter fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) ≥50% na ressonância magnética cardíaca (RMC) antes da randomização e não fazer uso de medicações das classes a serem estudadas (devido a hipertensão arterial sistêmica, por exemplo). As concentrações de troponina I de alta sensibilidade foram medidas antes da randomização, antes de cada ciclo de quimioterapia com antraciclina e 2, 4 e 6 meses após a conclusão da quimioterapia na coorte prospectiva. A intervenção do ensaio clínico consistiu em candesartana 8 mg por dia e aumentado até 32 mg por dia, e carvedilol iniciado com 6,25 mg duas vezes ao dia e aumentado até 25 mg duas vezes ao dia. A terapia combinada de candesartana e carvedilol foi dispensada dentro de 14 dias após a randomização até a conclusão do estudo e foi ajustada conforme a função renal e os níveis pressóricos quando necessário. 

O desfecho primário de eficácia, para o estudo randomizado, foi a alteração na FEVE desde o início até 6 meses após a dose final de antraciclina, determinada por RMC. O estudo de coorte, por sua vez, inicialmente avaliou alterações precoces na concentração de troponina cardíaca durante o tratamento com antraciclinas, discriminando pacientes com baixo e alto risco de cardiotoxicidade.  Para avaliação da acurácia, os pacientes considerados de baixo risco foram seguidos por 6 meses e foi proposto um desfecho secundário de eficácia:  a ausência de alteração na FEVE (com limites de equivalência de ±2%) nos pacientes cuja alteração de troponina os classificasse como baixo risco. 

 

Estrutura PICOT 

Population: Pacientes submetidos a quimioterapia com antraciclinas. 

Intervention: tratamento cardioprotetor com candesartana + carvedilol 

Control: tratamento convencional 

Outcome: queda na FEVE  

Time: 6 meses após a última dose de antraciclina 

 

E aí? 

No total, foram incluídos 175 pacientes de 7 centros no Reino Unido, entre 2017 e 2021. O estudo de intervenção randomizou 57 pacientes de alto risco para DVE (com troponina I ≥ 5 ng/L no ciclo 2 e/ou ≥23 ng/L dos ciclos 3 a 6), sendo 29 no grupo cardioproteção e 28 no grupo do tratamento convencional. Os grupos eram compostos majoritariamente por mulheres com câncer de mama, com idade média de 54 anos. Os pacientes randomizados para cardioproteção ou tratamento padrão apresentaram FEVE de 69,4±7,4% e 69,1±6,1% no início do estudo e 65,7±6,6% e 64,9±5,9% em 6 meses após o término da quimioterapia, respectivamente. Portanto, não houve alteração na diferença média estimada na FEVE de 6 meses entre os grupos (-0,37 pontos percentuais; intervalo de confiança [IC] 95% -3,59 a 2,85; P=0,82), ajustado para idade, FEVE pré-quimioterapia e dose planejada de antraciclina. Ainda, no grupo de cardioproteção, 71,4% dos pacientes apresentou pelo menos um evento adverso (como tontura, hipotensão e até síncope) em comparação com 10,3% dos pacientes no tratamento convencional. 

Os pacientes com baixo risco de desenvolver DVE por cardiotoxicidade foram avaliados no braço não randomizado do estudo (118 pacientes, sendo 90% mulheres com idade média de 52 anos).  Nesse grupo, a FEVE inicial e de 6 meses foi de 69,3±5,7% e 66,4±6,3%, respectivamente (diferença média de 2,87%; IC 95% 1,63% a 4,10%; P para equivalência = 0,92). Assim, o objetivo secundário principal de demonstrar nenhuma alteração na FEVE, no grupo de baixo risco conforme estratificado pelo nível de biomarcadores, também não foi alcançado. 

 

E agora? 

A disfunção cardíaca causada pelas terapias oncológicas segue sendo um importante desafio para a medicina atual.  Uma grande dificuldade nesse cenário tem sido a constante inclusão de pacientes com baixo risco de cardiotoxicidade em estudos de prevenção, possivelmente reduzindo o potencial para demonstrar os efeitos cardioprotetores das estratégias terapêuticas propostas. Os resultados do CARE ressaltam a importância de testar biomarcadores como desfechos substitutos na triagem das lesões cardíacas induzidas por agentes quimioterápicos, mesmo no contexto de ensaios clínicos randomizados, antes de adotá-los na prática clínica. Pesquisas futuras devem ser direcionadas à melhor compreensão, inclusive, dos fatores que determinam a evolução da disfunção cardíaca tardia nesta população, além dos preditores de injúria imediata durante o tratamento quimioterápico. 

Além disso, o estudo atual falhou em comprovar o benefício de terapias cardioprotetoras consagradamente benéficas em outros cenários de injúria miocárdica aguda, como o infarto agudo do miocárdio. Porém, algumas limitações podem ter contribuído: 31% dos pacientes pararam de tomar ou não iniciaram a terapêutica combinada prescrita no braço cardioproteção após 2 meses de randomização (especialmente devido a efeitos adversos como tontura). Considerando o tamanho amostral, pode ter havido diminuição no poder do estudo e/ou na magnitude do efeito. Outro fator limitante foi o fato de que, apesar de terem sido incluídos no grupo de alto risco de injúria miocárdica pelo nível de troponina, os pacientes do grupo intervenção tiveram a mesma alteração na FEVE que o grupo não randomizado (em teoria, de baixo risco) – reforçando a necessidade de melhores preditores de cardiotoxicidade precoce e insuficiência cardíaca tardia pelo uso de quimioterápicos. Além disso, futuros estudos, com maior tamanho amostral e poder adequado sobretudo para desfechos clínicos (como morte e hospitalização por insuficiência cardíaca), devem esclarecer melhor se os bloqueadores neuro-hormonais, como betabloqueadores, podem prevenir a cardiotoxicidade por antraciclinas.  

Referência

  1. Henrikisen PA, Hall P, MacPherson IR et al. Multicenter, Prospective, Randomized Controlled Trial of High-Sensitivity Cardiac Troponin I–Guided Combination Angiotensin Receptor Blockade and Beta-Blocker Therapy to Prevent Anthracycline Cardiotoxicity: The Cardiac CARE Trial. Circulation, 2023; Ahead of printhttps://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.123.064274 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia