Autora: Flávia Bittar Britto Arantes, MD, PhD
Cardiologista, especialista em coronariopatia aguda pelo Incor. Doutora pela FMUSP. Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia
Revisor: Pedro Barros, MD, MHS, PhD, FACP, FACC, FESC
Cardiologista, especialista em ecocardiografia pelo Incor HC-FMUSP. Mestre em Pesquisa Clínica pela Duke University. Doutor em cardiologia e Pós-doutor em medicina translacional pela UNIFESP. Pesquisador sênior do Brazilian Clinical Research Institute e do Instituto de Pesquisa do Hcor. Professor Colaborador da Universidade Federal de São Paulo e Diretor do grupo Med.IQ
O quê?
O estudo Cardiovascular Disease in Anabolic Androgenic Steroid Users foi um estudo epidemiológico que avaliou dados de homens sancionados em um programa antidoping por uso de esteroides anabolizantes em academias dinamarquesas entre 2006 e 2018 quanto aos desfechos cardiovasculares.
Por quê?
Os esteroides androgênicos anabolizantes (EAA) são drogas que melhoram o desempenho e efetivamente aumentam a massa e a força muscular esquelética. A curto prazo, o uso de EAA oferece uma vantagem nos esportes e, portanto, é proibido neste contexto. A longo prazo, o uso de EAA está associado ao aumento da mortalidade, devido ao potencial trombogênico e inflamatório dessa classe de drogas. Apesar dos riscos conhecidos, a epidemiologia da doença cardiovascular entre usuários de EAA permanece relativamente inexplorada. O objetivo deste estudo foi avaliar a incidência de doença cardiovascular, incluindo infarto agudo do miocárdio, revascularização coronária (percutânea ou cirúgica), tromboembolismo venoso, acidente vascular cerebral isquêmico, arritmia, cardiomiopatia, insuficiência cardíaca ou parada cardíaca em um grupo de usuários de EAA e compará-lo com uma coorte pareada por idade e sexo.
Como ?
O estudo coletou dados de participantes de uma iniciativa nacional que envolveu 342 academias (cerca de 80% das unidades da Dinamarca), as quais colaboraram com o projeto Anti Doping Denmark, com cerca de 1000 inspeções anuais de 2006 a 2018 para impedir o doping por esteroides anabolizantes. As sanções incluíram 2 anos de exclusão de academias de ginástica e 4 anos de exclusão em esportes para os infratores. Os homens constituíram o foco devido a poucos casos de sanções às mulheres (apenas 19 casos durante o período de análise). Foram considerados como casos os usuários do EAA que testaram positivo para andrógenos ou se recusaram a realizar os testes, enfrentando sanções equivalentes. Os participantes eram atletas recreativos sem origem étnica registrada. Cada usuário de EAA foi pareado com 50 controles da população em geral.
Os desfechos avaliado foram casos incidentes de infarto agudo do miocárdio, intervenção coronária percutânea ou cirurgia de revascularização miocárdica, trombose venosa (embolia pulmonar, outraembolia venosa e trombose), acidente vascular cerebral isquêmico, arritmia (incluindo taquicardia paroxística, fibrilação e flutter atrial, e outras arritmias cardíacas), cardiomiopatia, insuficiência cardíaca e parada cardíaca desde a admissão do estudo até o final do seguimento clínico em 2023.
E aí?
O estudo incluiu 1189 usuários de EAA e 59450 controles com um acompanhamento de 11 anos. Os usuários do EAA tinham idade média de 27 anos e menor escolaridade do que os homens do grupo controle. O uso de EAA foi associado a um risco significativamente maior de doenças cardiovasculares. O infarto agudo do miocárdio foi 3 vezes maior em usuários de EAA ( hazard ratio ajustado [aHR] 3,00; intervalo de confiança [IC] 95% 1,67 a 5,39). A incidência de intervenção coronária percutânea ou cirurgia de revascularização do miocárdio também foi significativamente maior (aHR 2,95; IC95% 1,68 a 5,18). O tromboembolismo venoso mostrou um risco aumentado (aHR 2,42; IC95% 1,54 a 3,8). As arritmias em geral foram mais prevalentes em usuários de EAA (aHR 2,26; IC95% 1,53 a 3,32), com fibrilação atrial sendo mais frequente. A incidência de cardiomiopatia foi 9 vezes maior, com cardiomiopatia hipertrófica não obstrutiva dominante em usuários de EAA. O risco de insuficiência cardíaca foi significativamente elevado (aHR 3,63; IC95% 2,01 a 6,55). Os dados de AVC isquêmico e parada cardíaca foram insuficientes para análise estatística.
E agora?
A natureza observacional do estudo e as limitações relacionadas devem ser consideradas. Os pesquisadores não tinham informações sobre a duração e a dosagem do uso de EAA. Ainda, a menor escolaridade e, especialmente, a natureza ilegal do uso de EAA sugerem um pior estilo de vida, com possíveis fatores de confusão não mensuráveis, como álcool, tabagismo e abuso de outras drogas.
Apesar disso, o estudo que traz dados de práticas de mundo real e se baseia em uma campanha de conscientização com grande impacto na Dinamarca, forneceu informações valiosas sobre os riscos cardiovasculares do abuso dos esteroides anabolizantes. O seguimento de longo prazo e o uso do banco de dados de saúde dinamarquês tornaram as informações mais precisas e trouxeram a preocupação quanto ao aumento importante do risco aterosclerótico e de miocardiopatia hipertrófica e arritmogênica nessa população.
Pesquisas contínuas nessa área, incluindo populações diversas e participantes do sexo feminino ainda são necessárias para expandir ainda mais nossa compreensão das consequências do uso de EAA na saúde cardiovascular. Porém, fica clara a importância de integrar a conscientização sobre os riscos dos EAA na prática clínica e nos esforços de saúde pública, apoiando os prestadores de cuidados de saúde na educação dos pacientes e contribuindo para intervenções destinadas a reduzir o uso dos EAA.