O quê?
Uma sub-análise do estudo randomizado, duplo-cego DELIVER (Dapagliflozin Evaluation to Improve the Lives of Patients With Preserved Ejection Fraction Heart Failure), que comparou dapagliflozina versus placebo em pacientes com insuficiência cardíaca e fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) > 40%, avaliou impacto da piora ambulatorial da insuficiência cardíaca.
Por quê?
A insuficiência cardíaca é uma doença de elevada morbidade, com pacientes apresentando frequentemente hospitalizações, idas ao pronto-socorro e piora na qualidade de vida pela doença. Em alguns casos, mesmo que não haja necessidade de uso de diurético endovenoso (EV), muitos pacientes apresentam piora e são tratados em regime ambulatorial com aumento de dose do diurético via oral (VO). Entretanto, permanece incerto qual é o prognóstico destes casos em relação aos que necessitam de internação ou uso de diurético EV.
Como?
O estudo DELIVER incluiu pacientes com idade > 40 anos, sintomas persistentes de insuficiência cardíaca, peptídeo natriurético elevado, evidência de alteração estrutural e FEVE > 40% no ecocardiograma. Pacientes com taxa de filtração glomerular (TFG) < 25 ml/min/1,73 m2, diabetes tipo 1 ou uso prévio de inibidores de SGLT2 (sodium-glucose co-transporter 2) foram excluídos. Os pacientes foram randomizados para dapagliflozina 10 mg versus placebo.
O desfecho primário do estudo principal foi a ocorrência de morte cardiovascular (CV), hospitalização ou visita urgente por piora da insuficiência cardíaca. O desfecho composto de morte CV, hospitalização, visita urgente ou piora ambulatorial da insuficiência cardíaca foi um desfecho exploratório. A visita urgente era definida como a necessidade de ida ao pronto-socorro, hospital-dia ou ambulatório para uso de diurético EV, enquanto a piora ambulatorial era definida como aumento de dose ou introdução de diurético de alça.
Estrutura PICOT | |
Population: | Pacientes com IC e FEVE > 40% |
Intervention: | Dapagliflozina 10 mg |
Control: | Placebo |
Outcome | Morte CV, hospitalização, visita urgente ou piora ambulatorial da insuficiência cardíaca |
Time | 2 anos (em média) |
E aí?
Dos 6263 pacientes incluídos no estudo DELIVER, 1731 (28%) experimentaram um evento de piora da insuficiência cardíaca (levando-se em conta o primeiro evento). Destes, 45% se manifestaram como piora ambulatorial, 5% como visita urgente, 34% como hospitalização e 16% como morte. Os pacientes que tiveram a primeira manifestação como piora ambulatorial eram mais idosos (idade média 73 versus 70 anos) e com mais frequência provenientes da Ásia e América Latina em relação aos pacientes que tiveram como primeira manifestação uma visita urgente. Em média, entre os pacientes que apresentaram piora ambulatorial, o incremento na dose de diurético foi equivalente a 56 mg de furosemida.
A mortalidade subsequente foi de 4 por cada 100 pacientes-ano (intervalo de confiança [IC] 95% 3-4) entre os pacientes sem eventos de piora da insuficiência cardíaca, 10 por cada 100 pacientes-ano (IC 95% 8-12) entre os pacientes com piora ambulatorial, 10 por cada 100 pacientes-ano (IC 95% 6-18) entre os pacientes com visita urgente e 35 por cada 100 pacientes-ano (IC] 95% 31-40) entre os pacientes com necessidade de hospitalização. O desfecho exploratório de morte CV, hospitalização, visita urgente ou piora ambulatorial da insuficiência cardíaca foi menos frequente com a dapagliflozina versus placebo (769 versus 962 pacientes com evento, respectivamente; hazard ratio [HR] 0,76; IC 95% 0,69-0,84), assim como o foi o componente isolado de piora ambulatorial (440 versus 588 eventos, respectivamente; HR 0,72; IC 95% 0,64-0,82).
E agora?
O prognóstico da insuficiência cardíaca guarda relação próxima com a gravidade dos sintomas, de tal modo que a presença de sintomas persistentes, classe funcional II-IV da New York Heart Association, se associa a maior mortalidade nestes pacientes. Além disso, a qualidade de vida costuma ser bastante impactada pelos sintomas e limitações da doença. Neste sentido, a presente sub-análise traz três informações bastante relevantes. Em primeiro lugar, 45% dos primeiros eventos de piora da doença, na população do estudo DELIVER, se manifestaram como piora ambulatorial. Em segundo lugar, a piora ambulatorial se associou a um prognóstico de morte subsequente semelhante ao de piora com necessidade de visita urgente. Em terceiro lugar, o uso do inibidor de SGLT2 também pareceu resultar em redução destes eventos de piora com necessidade de aumento de diurético VO.
A presente sub-análise apresenta algumas limitações que devem ser observadas. Em primeiro lugar, ao compararmos os grupos com primeiro evento de piora ambulatorial versus visita urgente, diversas diferenças são observadas, como idade e país de origem. É possível que eventuais diferenças de prognóstico entre os grupos pudessem ter sido encobertas por confundidores não mensurados. Por exemplo, a piora da insuficiência cardíaca pode mais provavelmente ser tratada de maneira ambulatorial com aumento de diurético VO em locais com assistência médica mais precária. Como se trata de uma comparação não-randomizada, é possível que o aparente impacto subsequente na mortalidade em pacientes com piora ambulatorial possa ter sido superestimado pela própria procedência (ou seja, em outros locais do mundo, seriam os mesmos pacientes tratados apenas com aumento da dose oral, ou encaminhados ao pronto-socorro para uso de diurético EV?). Em segundo lugar, os eventos de piora ambulatorial não foram validados por um comitê de adjudicação (ou comitê de eventos clínicos). Embora em um estudo duplo-cego um possível viés de aferição não costume ser problema, não se sabe ao certo se este aumento de diurético foi de fato devido a critérios clínicos de piora da insuficiência cardíaca. Em terceiro lugar, o efeito da dapagliflozina sobre estes eventos, embora seja compatível como os resultados do estudo principal, como redução de hospitalização e melhora na qualidade de vida, deve ser interpretado como gerador de hipótese em virtude da natureza exploratória do desfecho.
Apesar do exposto, a presente sub-análise do estudo DELIVER traz três grandes mensagens para a comunidade cardiológica. Em primeiro lugar, ressalta a importância em não se menosprezar a piora ambulatorial da insuficiência cardíaca. Em segundo lugar, sugere que inibidores de SGLT2 como a dapagliflozina possam resultar em menor necessidade de diuréticos de alça. Por último, é possível que futuros estudos sobre insuficiência cardíaca considerem a inclusão da piora ambulatorial entre os componentes do desfecho primário.