Interrupção tardia ou continuação do tratamento com betabloqueador após 6 meses de um infarto agudo do miocárdio – ABYSS trial - MDHealth - Educação Médica Independente
segunda-feira out 14, 2024

Interrupção tardia ou continuação do tratamento com betabloqueador após 6 meses de um infarto agudo do miocárdio – ABYSS trial

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 14 de outubro de 2024

6 min de leitura

O quê? 

O estudo Beta-Blocker Interruption or Continuation after Myocardial Infarction – ABYSS (Assessment of Beta-Blocker Interruption 1 Year after an Uncomplicated Myocardial Infarction on Safety and Symptomatic Cardiac Events Requiring Hospitalization) trial foi um ensaio clínico multicêntrico, randomizado, aberto que avaliou a interrupção ou continuação do tratamento com betabloqueadores em pacientes com histórico de infarto do miocárdio há mais de 6 meses e fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) ≥ 40%. 

 

Por quê? 

O benefício da terapia rotineira com betabloqueadores em pacientes com infarto do miocárdio deriva de ensaios realizados antes da era moderna da reperfusão miocárdica e do arsenal terapêutico farmacológico e intervencionista atual. A terapia de reperfusão coronariana precoce levou a uma diminuição acentuada nos riscos de insuficiência cardíaca e morte após infarto do miocárdio. Nesse sentido, considerando a atual preservação do miocárdio após o infarto, questiona-se os benefícios adicionais do tratamento vitalício com betabloqueadores em pacientes com FEVE preservada e nenhuma outra indicação primária para terapia com betabloqueadores. Alguns estudos contemporâneos não identificaram benefício a longo prazo da terapia com betabloqueadores nesses pacientes. O presente estudo, portanto, avaliou de forma randomizada, a segurança e benefício em qualidade de vida, da descontinuação tardia de betabloqueadores na ausência de fração de ejeção reduzida ou outra indicação formal primária de beta-bloqueador. 

Como? 

Os principais critérios de inclusão foram histórico de infarto do miocárdio pelo menos 6 meses antes do recrutamento e tratamento com betabloqueador, independentemente do agente ou da dose. Os pacientes eram excluídos caso apresentassem insuficiência cardíaca crônica ou fração de ejeção ventricular esquerda reduzida (<40%), qualquer evento cardíaco durante os 6 meses anteriores ou qualquer outra indicação primária para terapia com betabloqueadores, como arritmia, enxaqueca ou hipertensão não controlada. 

 

Os pacientes foram então randomizados 1:1 em um estudo aberto, multicêntrico em 49 centros de pesquisa na França, para avaliação de não inferioridade da estratégia de suspensão do betabloqueador, comparado ao tratamento habitual de manutenção do mesmo (não-inferioridade definida como uma margem máxima de diferença entre grupos de até 3 pontos percentuais para o limite superior do intervalo de confiança bilateral de 95%). O desfecho primário foi um composto de morte, infarto do miocárdio não fatal, acidente vascular cerebral não fatal ou hospitalização por causas cardiovasculares no seguimento mais longo (mínimo de 1 ano). O principal desfecho secundário foi a mudança na qualidade de vida medida pelo questionário European Quality of Life – 5 Dimensions. 

Estrutura PICOT  

Population: pacientes com IAM há ≥ 6 meses e FEVE≥40% 

Intervention:  descontinuar o betabloqueador 

Control: manter betabloqueador 

Outcome morte, infarto do miocárdio não fatal, acidente vascular cerebral não fatal ou hospitalização por causas cardiovasculares 

Time 3 anos (mediana) 

E aí? 

Um total de 3.698 pacientes foram randomizados: 1.846 para o grupo de interrupção e 1.852 para o grupo de manutenção, entre agosto de 2018 e setembro de 2022. A média (±DP) de idade dos pacientes foi de 63,5±11 anos e 17,2% eram mulheres. 63,0%dos pacientes tiveram IAM prévio com elevação do segmento ST, porém a mediana da FEVE foi de 60% (intervalo interquartil [IQR] 52-60), sendo que 23,4% apresentavam FEVE 40 a 50%. O tempo mediano entre o último infarto do miocárdio e a randomização foi de 2,9 anos (IQR 1,2 – 6,4 anos) e a mediana de acompanhamento foi de 3,0 anos (IQR 2,0 – 4,0 anos).  

O desfecho primário ocorreu em 432 de 1.812 pacientes (23,8%) no grupo de interrupção e em 384 de 1.821 pacientes (21,1%) no grupo de continuação (diferença de risco: 2,8 pontos percentuais; intervalo de confiança [IC] de 95% < 0,1 – 5,5), para um hazard ratio de 1,16 (IC 95% 1,01 – 1,33; P = 0,44 para não inferioridade). Não houve diferença quantos aos desfechos secundários individuais de morte ou AVC ou IAM ou hospitalização. 

Entre os 3.698 pacientes submetidos à randomização, 3.625 pacientes (98,0%) responderam ao questionário inicial de qualidade de vida – EQ-5D – e 3.331 pacientes (90,1%) responderam ao questionário de acompanhamento para avaliar a diferença na qualidade de vida. Não houve diferença entre os grupos, sendo que a mudança absoluta na pontuação entre o início e o último acompanhamento foi de 0,033±0,150 no grupo de interrupção e 0,032±0,164 no grupo de continuação (diferença média, 0,002; IC 95% -0,008 – 0,012). 

E agora? 

A discussão sobre o uso de betabloqueadores após o infarto segue a máxima de que “nem tudo que tem plausibilidade biológica, tem evidência científica”. O racional das arritmias como maior causa das complicações em um pós-IAM data da era pré-reperfusão e não deve ser extrapolado para a prática baseada em evidências do mundo atual. 

O estudo ABYSS sugeriu que a suspensão tardia do betabloqueador não foi não inferior à manutenção do mesmo após o IAM. Apesar do trocadilho difícil, a mensagem é clara:  desprescrever os pacientes em uso de betabloqueador não trouxe benefício aos pacientes. A importância dessa publicação, 6 meses após o resultado do estudo REDUCE-AMI, reforça a interpretação adequada desse último: não há indicação de suspender betabloqueador em pacientes pós-IAM estáveis em uso do mesmo. O estudo REDUCE-AMI avaliou a prescrição ou não de betabloqueadores em um seleto grupo de pacientes pós infarto na FASE AGUDA, bem tratados e bem reperfundidos e com FEVE>50% e não demonstrou efeito sobre morte ou infarto do miocárdio ou  aos sintomas de angina após 1 ano de tratamento. Seguindo o princípio da generalização, esse resultado deve ser aplicado apenas nesses pacientes. Além disso, é valido lembrar que ao final de 1 ano, nesse mesmo estudo, aberto, quase 1/3 dos pacientes migraram para o uso do betabloqueador por condições clínicas como arritmia ou presença de angina.  

No geral, o estudo ABYSS foi um estudo pragmático importante e bem executado, mas tem limitações que precisam ser consideradas. O desenho aberto é problemático quando um desfecho, como a hospitalização por causas cardiovasculares, determina os resultados do estudo clínico. Outro dado que pode gerar confusão é o fato de quase ¼ dos pacientes apresentarem fração de ejeção levemente reduzida, população na qual há maior potencial para benefício em manter os betabloqueadores.  

As diferenças entre os estudos ABYSS e REDUCE-AMI em relação ao efeito dos betabloqueadores na angina podem ser explicadas por diferenças em relação ao tempo desde a revascularização do infarto ( tardia, em média 3 anos no estudo ABYSS), à gravidade da doença arterial coronariana e ao tratamento com outros medicamentos anti-isquêmicos que foi administrado ao grupo que não recebeu betabloqueadores. É importante lembrar que, em pacientes em uso atual do betabloqueador, sua suspensão pode causar efeito rebote e, dessa forma, aumentar o risco de angina no paciente. 

No momento, as mensagens são: em pacientes pós infarto estáveis com FEVE preservada e assintomáticos, a análise crítica deve ser feita e não usar betabloqueador como arsenal terapêutico obrigatório parece ser razoável. Naqueles pacientes coronariopatas crônicos com IAM prévio, já em uso de betabloqueador, mantê-lo parece ser razoável. Como já dissemos em outra análise nesse canal, alguns estudos de desenho randomizado estão em andamento com publicação prevista para os próximos dois anos e prometem trazer dados mais robustos para completar este “quebra-cabeça”. 

Referência

  1. Sapp JL, Sivakumaran S, Redpath CJ, et al. Long-term outcomes of resynchronizationdefibrillation for heart failure. N Engl J Med2024;390:212-220 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia

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