O quê?
O estudo RIGHT: Postprocedural Anticoagulation After Primary Percutaneous Coronary Intervention for ST-Segment–Elevation Myocardial Infarction: A Multicenter, Randomized, Double-Blind Trial (1) foi um ensaio clínico randomizado que avaliou a eficácia e segurança da anticoagulação após a intervenção coronariana percutânea (ICP) primária no tratamento no infarto agudo do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSST).
Por quê?
A anticoagulação parenteral é parte fundamental do tratamento inicial da síndrome coronariana aguda (SCA) de forma geral e, em especial, na fase periprocedimento nos pacientes com IAMCSST que são tratados com uma estratégia invasiva. Porém, os protocolos e práticas institucionais e diretrizes nacionais e internacionais divergem sobre os possíveis benefícios e riscos da manutenção da anticoagulação parenteral após a ICP, na fase intra-hospitalar. A diretriz europeia para o manejo da SCA, atualizada em 2023, orienta que os anticoagulantes devem ser descontinuados imediatamente após a ICP, exceto em situações clínicas específicas como a presença confirmada de aneurisma do VE com formação de trombo ou FA com necessidade de anticoagulação (2). As diretrizes brasileiras deixam a decisão da manutenção à critério clínico e a diretriz norte americana não cita o cenário da anticoagulação pós-procedimento no IAMCSST submetido à ICP (3,4). Portanto, entender a eficácia e especialmente a segurança dessa conduta contemporânea, especialmente na era dos stents farmacológicos no IAMCSST, se faz necessário.
Como?
Trata-se de um estudo multicêntrico, randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, de inciativa do investigador, realizado em 53 centros na China. Antes do início, cada centro selecionou um dos três regimes de anticoagulação pós-procedimento, conforme prática institucional (enoxaparina 40 mg uma vez ao dia por via subcutânea, heparina não fracionada (HNF) 10 unidades/kg/hora por via intravenosa ajustada para manter o tempo de coagulação ativada entre 150 e 220 segundos, ou bivalirudina 0,2 mg/kg/hora por via intravenosa). Os pacientes foram randomizados na proporção de 1:1, estratificados por centro, para receber baixas doses de anticoagulação parenteral ou placebo correspondente por pelo menos 48 horas após a ICP.
O objetivo primário de eficácia foi a superioridade da anticoagulação pós ICP na redução de morte por todas as causas, IAM não fatal, acidente vascular cerebral não fatal, trombose definitiva do stent ou revascularização urgente de qualquer vaso no prazo de 30 dias. O desfecho primário de segurança foi sangramento grave (definido como Bleeding Academic Research Consortium [BARC] tipo 3 a 5) em 30 dias. O principal objetivo secundário foi avaliar o efeito de cada regime de anticoagulação específico (enoxaparina, heparina não fracionada ou bivalirudina) no desfecho primário.
Estrutura PICOT
Population: paciente com IAMCSST
Intervention: anticoagulação após ICP
Control: placebo
Outcome: eficácia (MACE, trombose definitiva do stent ou revascularização urgente de qualquer vaso) e segurança (sangramento BARC 3 a 5)
Time 30 dias
E aí?
Entre 10 de janeiro de 2019 e 18 de setembro de 2021, um total de 2.989 pacientes com IAMCSST submetidos a ICP primária foram incluídos e randomizados, sendo 1494 no grupo anticoagulação e 1495 no grupo placebo. A média de idade dos pacientes foi de 60,9 anos, sendo 20,7% do sexo feminino, 24,5% portadores de diabetes mellitus e 54,5% hipertensos. O tempo porta-balão médio foi de 75 minutos e a maioria dos pacientes (77,4% do grupo anticoagulação) recebeu ticagrelor como inibidor P2Y12.
Não houve diferença no desfecho primário de eficácia, que ocorreu em 37 pacientes (2,5%) em ambos os grupos (hazard ratio [HR] 1,00; intervalo de confiança [IC] 95% 0,63 a 1,57). No entanto, no desfecho secundário foi observada uma interação significativa entre o tipo de anticoagulante e o e o desfecho de eficácia, especialmente no grupo enoxaparina vs. placebo (HR 0,46, IC 95% 0,22 a 0,98). Paradoxalmente, a heparina não fracionada pareceu aumentar o risco de ocorrência de eventos trombóticos versus placebo (HR 3,71, IC 95% 1,03 a 13,28); e a bivalirudina vs. placebo teve efeito neutro (HR 1,24, IC 95% 0,60 a 2,59). Não houve diferença no desfecho primário de segurança de sangramento maior entre os grupos anticoagulação versus placebo, respectivamente (8 [0,5%] versus 11 [0,7%] pacientes; HR, 0,74 [IC 95%, 0,30 a 1,83], e nem em qualquer tipo de sangramento.
E agora?
Apesar do estudo RIGHT ter demonstrado segurança no uso da anticoagulação panrenteral por pelo menos 48 horas após a intervenção coronariana percuntânea em pacientes com IAMCSST, não houve evidência alguma de benefício na redução de eventos trombóticos nesse cenário. Esse resultado contradiz estudos de mundo real que vêm sugerindo que essa prática é frequentemente realizada após ICP primária e pode estar associado a redução de eventos isquémicos após o IAM.
O estudo ATOLL, publicado em 2011, incluiu o uso da enoxaparina 40 mg uma vez ao dia SC por >48 horas após ICP primária realizada com enoxaparina intravenosa versus HNF (comparação primária do estudo) e demonstrou menor risco de eventos isquêmicos sem excesso de sangramento. Porém a anticoagulação parenteral e intra-hospitalare pós ICP não havia sido avaliada de forma primária, contra placebo e na era atual, considerando antiagregantes plaquetários mais potentes e uso de stents farmacológicos de última geração, como ocorreu no presente estudo.
No entanto, o estudo RIGHT apresenta importantes limitações: apesar da randomização e do cegamento para cada estratégia de anticoagulação proposta, cada centro de pesquisa poderia definir o anticoagulante de escolha conforme prática institucional, o que pode ter tornado os grupos heterogêneos entre si. Além disso, a generalização do estudo também é comprometida por se tratar de estudo em população exclusivamente asiática. O uso predominante de ticagrelor também não é uma prática de fácil reprodutibilidade globalmente. A análise por subgrupo de anticoagulante apresentou um resultado paradoxal de aumento de eventos isquêmicos com o uso da HNF e deve ser interpretado com muita cautela, uma vez que o estudo não tem poder para avaliar os resultados individuais por subgrupo.
Porém, tal achado pode justificar a inconsistência entre o presente estudo e os dados de real world evidence que demonstram redução de desfechos trombóticos sem o aumento de sangramento, especialmente relacionada ao uso da dose reduzida de enoxaparina após a ICP. Compreender melhor essa relação com o uso da heparina de baixo peso molecular, cuja prática é comum e coincide com critérios de profilaxia para trombose venosa profunda no contexto hospitalar seria de fundamental importância para orientar a prática clínica e alinhar a recomendação das diretrizes globalmente.