O uso da levotiroxina endovenosa no manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica - MDHealth - Educação Médica Independente
terça-feira nov 19, 2024

O uso da levotiroxina endovenosa no manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 16 de fevereiro de 2024

5 min de leitura

O quê?  

O estudo Intravenous Levothyroxine for Unstable Brain-Dead Heart Donors foi um ensaio clínico multicêntrico e randomizado que avaliou o uso da levotiroxina endovenosa na manutenção da viabilidade cardíaca em potenciais doadores de órgãos ( em especial, o coração) em morte encefálica e instabilidade hemodinâmica (1). 

 

Por quê?  

A constante escassez de corações disponíveis para transplante cardíaco exige importantes esforços para expandir o conjunto de possíveis doadores. Atualmente, alguns protocolos de manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica (ME) recomendam o uso de hormônio tireoidiano intravenoso, principalmente em doadores com disfunção ventricular esquerda ou instabilidade hemodinâmica, baseados em estudos observacionais. A justificativa para a suplementação de hormônio tireoidiano decorre de importantes mudanças fisiológicas que ocorrem após a morte encefálica. Após a herniação do tronco cerebral, ocorre disfunção hipotálamo-hipófise e consequente depleção hormonal,  resultando em deficiências de tireotropina, vasopressina e outros hormônios que são essenciais para a regulação das funções fisiológicas. Essas deficiências podem levar a um estado de hipotireoidismo e à disfunção ventricular esquerda após a morte encefálica, sendo esta uma das principais razões para a não utilização de corações de doadores em transplantes. Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo avaliar o impacto do uso da levotiroxina endovenosa na taxa de transplantes de coração de doadores hemodinamicamente instáveis. 

 

Como?  

O estudo foi conduzido de forma multicêntrica, envolvendo 15 organizações de procura de órgãos (OPOs) nos Estados Unidos (em 12 delas, os protocolos locais ainda recomendavam o uso de levotiroxina). Todos os pacientes falecidos e com autorização para doação de órgãos que receberam atendimento das OPOs participantes foram avaliados quanto à elegibilidade, que incluiu: declaração de óbito segundo critérios neurológicos para ME, autorização para pesquisa, idade de 14 a 55 anos, peso≥ 45 kg, e instabilidade hemodinâmica, definida como o uso de um ou mais vasopressores ou inotrópicos, após reposição volêmica (excluindo o uso exclusivo de vasopressina para tratamento do diabetes insipidus). Os doadores foram excluídos se seus corações não estivessem sendo considerados para transplante devido a doença cardíaca previamente conhecida ou se tivessem recebido hormônio tireoidiano no último mês.  

Os doadores foram randomizados em até 24 horas após a declação de ME na proporção de 1:1 para receber solução salina ou levotiroxina endovenosa a 30mcg/hora por 12 horas, podendo essa dose ser reduzida ou descontinuada em caso de alterações hemodinâmicas pré-especificadas como arritmias, hipertensão ou taquicardia. O estudo foi não cego para os integrantes das OPOs. 

O desfecho primário foi a taxa de transplante do coração do doador. O desfecho de segurança para o receptor do coração foi a sobrevivência do enxerto 30 dias após o transplante. Os desfechos secundários incluíram, dentre outros,  o desmame da terapia vasopressora e fração de ejeção no doador e o número de órgãos transplantados por doador. 

E aí?   

Entre dezembro de 2020 e novembro de 2022, 3259 doadores foram triados, sendo 852 randomizados e 838 incluídos na análise primária (419 em cada grupo). Os doadores tinham idade média de 36 anos, sendo em sua maioria homens e brancos. A causa de morte mais frequente foi a anóxia (entre 40-49%), seguida de trauma (29-35%) e do acidente vascular encefálico (20 a 22%).  

 

Foram transplantados corações de 230 doadores (54,9%) no grupo da levotiroxina e 223 (53,2%) no grupo da solução salina (razão de risco ajustada, 1,01; intervalo de confiança [IC] de 95%, 0,97 a 1,07; P=0,57). A sobrevivência do enxerto no receptor, aos 30 dias, ocorreu em 224 corações (97,4%) transplantados de doadores do grupo levotiroxina e 213 corações (95,5%) do grupo placebo (IC 95%, -2,3 a 6,0; P<0,001 para não inferioridade com margem de 6 pontos percentuais). 

 

Da mesma forma, não houve diferença no desmame do vasopressor durante o atendimento ao doador (35,4% versus 39,2%; IC95% 0,79 a 1,04); na fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) do doador após infusão experimental ( 59%±11 versus 58%±12; IC 95% -0,6 a 2,7); ou número de órgãos transplantados por doador (em mediana 4; IC 0,99 a 1,08) entre os grupos levotiroxina e placebo, respectivamente.  

 

As análises post hoc mostraram que a falta de efeito do tratamento foi consistente em subgrupos definidos de acordo com o nível basal de T4 livre,  a FEVE basal <50%, a dose vasopressora no início do estudo e a causa da morte do doador. Por fim, como efeito colateral, em torno de 21% dos doadores tiveram a levotiroxina experimental suspensa devido a taquicardia ou hipertensão. 

 

E agora?  

Atualmente,  várias entidades pelo mundo se posicionam pela proscrição do uso rotineiro da levotiroxina para manutenção do coração no doador cadáver, como as Diretrizes brasileiras para o manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica, publicadas em 2021 (2). No entanto,  a plausibilidade biológica dessa conduta no cenário da ME (e a falta de estudos clínicos randomizados) ainda trazia certo apelo clinico à prática.   

No presente estudo, randomizado, controlado e multicêntrico com mais de 800 doadores, os autores não encontraram benefício estatisticamente significativo do tratamento com levotiroxina intravenosa na melhoria da utilização do coração do doador. Nem o desmame da terapia vasopressora, nem a fração de ejeção na ecocardiografia foram melhores com a levotiroxina do que com a solução salina, achados que sugerem uma falta de benefício fisiológico da levotiroxina na função cardiovascular do doador, contradizendo a prática atual em muitos centros de transplante. 

A condução do estudo foi desafiadora e trouxe limitações: uma vez que as OPOs avaliavam doadores em múltiplos centros, o cegamento para o tratamento não foi factível; além disso, os centros transplantadores seguiam protocolos diferentes entre si ( inclusive em relação ao uso da levotiroxina), o que trouxe certa heterogeneidade aos grupos em relação aos tratamentos concomitantes na manutenção do doador; e por fim, não foram incluídos pacientes apenas com critério de disfunção ventricular, porém a análise de subgrupo não observou efeito do tratamento nesses pacientes. 

Os estudos em doadores cadáveres trazem grandes desafios éticos e financeiros, por isso um estudo com a atual proporção e com resultado neutro (em consonância com ensaios clínicos randomizados menores, previamente publicados) provavelmente trará mudanças de paradigma à pratica clínica mundial. E, por mais elegante que o racional fisiopatológico do uso de hormônios em doadores cadáveres possa ser, a pesquisa clínica segue reforçando que “nem sempre a plausibilidade biológica traz consigo a evidência científica do benefício”. 

Referências

  1. Dhar R, Marklin GF, Klinkenberg WD, Wang J, Goss CW, Lele AV, Kensinger CD, Lange PA, Lebovitz DJ. Intravenous Levothyroxine for Unstable Brain-Dead Heart Donors. N Engl J Med. 2023 Nov 30;389(22):2029-2038. 

  2. Westphal GA, Robinson CC , Cavalcanti AB. Diretrizes brasileiras para o manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica. Uma força tarefa composta por Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos, Brazilian Research in Critical Care Network e Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes. Rev Bras Ter Intensiva. 2021;33(1):1-11  

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia