O quê?
O estudo Intravenous Levothyroxine for Unstable Brain-Dead Heart Donors foi um ensaio clínico multicêntrico e randomizado que avaliou o uso da levotiroxina endovenosa na manutenção da viabilidade cardíaca em potenciais doadores de órgãos ( em especial, o coração) em morte encefálica e instabilidade hemodinâmica (1).
Por quê?
A constante escassez de corações disponíveis para transplante cardíaco exige importantes esforços para expandir o conjunto de possíveis doadores. Atualmente, alguns protocolos de manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica (ME) recomendam o uso de hormônio tireoidiano intravenoso, principalmente em doadores com disfunção ventricular esquerda ou instabilidade hemodinâmica, baseados em estudos observacionais. A justificativa para a suplementação de hormônio tireoidiano decorre de importantes mudanças fisiológicas que ocorrem após a morte encefálica. Após a herniação do tronco cerebral, ocorre disfunção hipotálamo-hipófise e consequente depleção hormonal, resultando em deficiências de tireotropina, vasopressina e outros hormônios que são essenciais para a regulação das funções fisiológicas. Essas deficiências podem levar a um estado de hipotireoidismo e à disfunção ventricular esquerda após a morte encefálica, sendo esta uma das principais razões para a não utilização de corações de doadores em transplantes. Dessa forma, o presente estudo teve como objetivo avaliar o impacto do uso da levotiroxina endovenosa na taxa de transplantes de coração de doadores hemodinamicamente instáveis.
Como?
O estudo foi conduzido de forma multicêntrica, envolvendo 15 organizações de procura de órgãos (OPOs) nos Estados Unidos (em 12 delas, os protocolos locais ainda recomendavam o uso de levotiroxina). Todos os pacientes falecidos e com autorização para doação de órgãos que receberam atendimento das OPOs participantes foram avaliados quanto à elegibilidade, que incluiu: declaração de óbito segundo critérios neurológicos para ME, autorização para pesquisa, idade de 14 a 55 anos, peso≥ 45 kg, e instabilidade hemodinâmica, definida como o uso de um ou mais vasopressores ou inotrópicos, após reposição volêmica (excluindo o uso exclusivo de vasopressina para tratamento do diabetes insipidus). Os doadores foram excluídos se seus corações não estivessem sendo considerados para transplante devido a doença cardíaca previamente conhecida ou se tivessem recebido hormônio tireoidiano no último mês.
Os doadores foram randomizados em até 24 horas após a declação de ME na proporção de 1:1 para receber solução salina ou levotiroxina endovenosa a 30mcg/hora por 12 horas, podendo essa dose ser reduzida ou descontinuada em caso de alterações hemodinâmicas pré-especificadas como arritmias, hipertensão ou taquicardia. O estudo foi não cego para os integrantes das OPOs.
O desfecho primário foi a taxa de transplante do coração do doador. O desfecho de segurança para o receptor do coração foi a sobrevivência do enxerto 30 dias após o transplante. Os desfechos secundários incluíram, dentre outros, o desmame da terapia vasopressora e fração de ejeção no doador e o número de órgãos transplantados por doador.
E aí?
Entre dezembro de 2020 e novembro de 2022, 3259 doadores foram triados, sendo 852 randomizados e 838 incluídos na análise primária (419 em cada grupo). Os doadores tinham idade média de 36 anos, sendo em sua maioria homens e brancos. A causa de morte mais frequente foi a anóxia (entre 40-49%), seguida de trauma (29-35%) e do acidente vascular encefálico (20 a 22%).
Foram transplantados corações de 230 doadores (54,9%) no grupo da levotiroxina e 223 (53,2%) no grupo da solução salina (razão de risco ajustada, 1,01; intervalo de confiança [IC] de 95%, 0,97 a 1,07; P=0,57). A sobrevivência do enxerto no receptor, aos 30 dias, ocorreu em 224 corações (97,4%) transplantados de doadores do grupo levotiroxina e 213 corações (95,5%) do grupo placebo (IC 95%, -2,3 a 6,0; P<0,001 para não inferioridade com margem de 6 pontos percentuais).
Da mesma forma, não houve diferença no desmame do vasopressor durante o atendimento ao doador (35,4% versus 39,2%; IC95% 0,79 a 1,04); na fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) do doador após infusão experimental ( 59%±11 versus 58%±12; IC 95% -0,6 a 2,7); ou número de órgãos transplantados por doador (em mediana 4; IC 0,99 a 1,08) entre os grupos levotiroxina e placebo, respectivamente.
As análises post hoc mostraram que a falta de efeito do tratamento foi consistente em subgrupos definidos de acordo com o nível basal de T4 livre, a FEVE basal <50%, a dose vasopressora no início do estudo e a causa da morte do doador. Por fim, como efeito colateral, em torno de 21% dos doadores tiveram a levotiroxina experimental suspensa devido a taquicardia ou hipertensão.
E agora?
Atualmente, várias entidades pelo mundo se posicionam pela proscrição do uso rotineiro da levotiroxina para manutenção do coração no doador cadáver, como as Diretrizes brasileiras para o manejo de potenciais doadores de órgãos em morte encefálica, publicadas em 2021 (2). No entanto, a plausibilidade biológica dessa conduta no cenário da ME (e a falta de estudos clínicos randomizados) ainda trazia certo apelo clinico à prática.
No presente estudo, randomizado, controlado e multicêntrico com mais de 800 doadores, os autores não encontraram benefício estatisticamente significativo do tratamento com levotiroxina intravenosa na melhoria da utilização do coração do doador. Nem o desmame da terapia vasopressora, nem a fração de ejeção na ecocardiografia foram melhores com a levotiroxina do que com a solução salina, achados que sugerem uma falta de benefício fisiológico da levotiroxina na função cardiovascular do doador, contradizendo a prática atual em muitos centros de transplante.
A condução do estudo foi desafiadora e trouxe limitações: uma vez que as OPOs avaliavam doadores em múltiplos centros, o cegamento para o tratamento não foi factível; além disso, os centros transplantadores seguiam protocolos diferentes entre si ( inclusive em relação ao uso da levotiroxina), o que trouxe certa heterogeneidade aos grupos em relação aos tratamentos concomitantes na manutenção do doador; e por fim, não foram incluídos pacientes apenas com critério de disfunção ventricular, porém a análise de subgrupo não observou efeito do tratamento nesses pacientes.
Os estudos em doadores cadáveres trazem grandes desafios éticos e financeiros, por isso um estudo com a atual proporção e com resultado neutro (em consonância com ensaios clínicos randomizados menores, previamente publicados) provavelmente trará mudanças de paradigma à pratica clínica mundial. E, por mais elegante que o racional fisiopatológico do uso de hormônios em doadores cadáveres possa ser, a pesquisa clínica segue reforçando que “nem sempre a plausibilidade biológica traz consigo a evidência científica do benefício”.