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quarta-feira dez 18, 2024

Qualidade no cuidado das síndromes coronárias agudas em mulheres versus homens

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 4 de dezembro de 2023

6 min de leitura

O quê?  

O artigo Sex Disparities in Management and Outcomes Among Patients With Acute Coronary Syndrome trata de um estudo longitudinal que avaliou a disparidade quanto ao manejo e desfechos clínicos dos quadros de síndrome coronariana aguda (SCA) entre os sexos feminino e masculino. 

 

Por quê?  

Existem disparidades significativas relacionadas com o sexo biológico em pacientes com SCA, tanto na utilização de serviços de saúde e no reconhecimento inicial da doença, quanto nos resultados clínicos. Historicamente, estudos epidemiológicos demonstraram que as mulheres com SCA têm uma probabilidade maior de ter acesso tardio aos cuidados e são menos propensas a receber terapia invasiva precoce e medicação, tendo assim resultados clínicos piores do que os homens da mesma idade. Algumas possibilidades justificam esse cenário: mulheres com SCA frequentemente apresentam sintomas atípicos ou equivalentes isquêmicos, constantemente interpretados em serviços de emergência como sintomas não cardíacos. Por isso, pessoas do sexo feminino têm menor probabilidade de se submeter a testes de diagnóstico já na triagem, como eletrocardiograma e dosagem de marcadores de necrose miocárdica, tendo o diagnóstico inicial negligenciado ou atrasado em casos de sintomas leves a moderados.  

 

Como?  

Tratou-se se uma análise longitudinal anual (1º de janeiro de 2016 a 31 de dezembro de 2020) de 1.095.899 pacientes com SCA, em relação às disparidades relacionadas ao sexo biológico no cuidado, em hospitais acreditados por um programa de qualidade. A Associação Cardiovascular Chinesa lançou o Programa Nacional de Centros de Dor Torácica (National Chest Pain Centers ProgramNCPCP) em janeiro de 2016. Os objetivos deste programa nacional eram implementar ações de melhoria da qualidade assistencial em hospitais com cuidados de emergência em SCA e melhorar o diagnóstico precoce e o tratamento de pacientes com dor torácica. Todos os dados do presente estudo foram, portanto, provenientes dos hospitais que foram credenciados com sucesso no NCPCP para garantir consistência dos dados e comparar a assistência hospitalar antes, durante e depois da acreditação. 

 

Os desfechos avaliados foram as diferenças no tratamento e nos resultados entre homens e mulheres com SCA, por meio de indicadores de qualidade. Os critérios pré-hospitalares incluíram a associação por sexo: do tempo desde o início dos sintomas até o primeiro contato médico (início-FMC [first medical contact]), tempo desde o início dos sintomas até a ligação a um serviço médico de emergência (início-EMS) e o tempo de internação hospitalar sem receber intervenção coronária percutânea (não-ICP). Demais indicadores de qualidade avaliaram a associação entre o sexo e o uso de estatina na chegada, alta com estatina, alta com dupla antiagregação plaquetária (DAPT), intervenção coronária percutânea (ICP) primária para infarto do miocárdio com elevação do segmento ST (IAMCSST), ICP para SCA sem elevação do segmento ST de maior risco (IAMSSST), tempo desde a admissão (porta) até a ativação do serviço de hemodinâmica e tempo “porta-balão”. Finalmente, os desfechos clínicos avaliados foram mortalidade hospitalar e insuficiência cardíaca de início recente. 

 

Estrutura PECOT 
Population:   Pacientes com SCA 
Exposition   Pacientes do sexo feminino  
Control:   Pacientes do sexo masculino  
Outcome   Indicadores de qualidade relacionados aos protocolos de SCA 
Time   4 anos 

 

E aí?   

Foram coletados dados de 1.095.899 pacientes com SCA, sendo 346.638 mulheres (31,6%) e 749.261 homens (68,4%), com idade média 64 anos) de 989 hospitais. As mulheres tiveram tempos mais longos entre o início da dor e o primeiro contato médico (302 minutos [min], intervalo interquartil [IQR] 100-1684 versus 206 minutos, IQR 74-1124 min; P <0,001), bem como o início da dor e a ligação à emergência (58 min, IQR 20-176 versus 86 min, IQR 30-316), quando comparadas aos homens.  

 

Além disso, o sexo feminino, comparado ao masculino, foi associado a menores taxas de ICP para IAMSSST (43% vs 57,2%) e para IAMCSST (53,2% vs 61,1%); menor uso de estatinas na chegada (71,3% vs 73,8%) e menor alta com DAPT (86,9% vs 88,7%), todos com P<0,001. O tempo porta-balão foi menor em homens do que em mulheres (88 min [IQR, 60-130] vs 92 [62-136] min, respectivamente; P<0,001).  O estudo observou menores taxas de mortalidade em homens do que em mulheres (1,9% vs 2,7%, respectivamente) no grupo antes da acreditação, com resultados semelhantes nos grupos em fase de acreditação e após a acreditação. 

 

A qualificação dos hospitais dentro dos protocolos de qualidade do NCPCP foi associada a menores disparidades entre os sexos quanto ao tempo de início da dor-FMC, maior taxa de ICP primária para IAMCSST, maior uso de medicamentos e menos atrasos hospitalares para homens e para mulheres com SCA. O estudo também demonstrou menor taxa de insuficiência cardíaca hospitalar (odds ratio [OR] 0,73, intervalo de confiança 95% [IC95%] 0,66 a 0,82) para as mulheres e (OR 0,77, IC95% 0,69 a 0,85) para os homens, em hospitais já acreditados pelo programa de qualificação no protocolo de SCA. 

 

E agora?  

Apesar da apresentação da SCA comumente ser semelhante entre homens e mulheres (mais de 80% de ambos relatam dor torácica quando apresentam SCA), é comum que mulheres se queixem de sintomas adicionais associados, tais como dispneia, dor epigástrica ou mal-estar inespecífico. Além disso, entre os pacientes que se apresentam sem dor torácica, o sexo feminino é mais comum. Outro ponto importante a ser ressaltado é que o gatilho da SCA em mulheres com maior frequência tente a ser o estresse mental, psicossocial ou emocional, o que usualmente leva a uma interpretação equivocada da dor torácica resultante como “provavelmente não cardíaca”. Ainda, as mulheres tendem a apresentar SCA em idades mais avançadas do que os homens. Por isso, mulheres com SCA frequentemente apresentam mais comorbidades e maior risco de sangramento após um procedimento invasivo, o que pode levar a uma taxa mais baixa de ICP. Além disso, as mulheres tendem a estar em desvantagem em relação ao status socioeconômico e ao apoio social, o que pode contribuir para atraso no tempo desde o início dos sintomas até ao primeiro contato médico.  

 

Os tempos de tratamento desde o início dos sintomas de dor torácica em SCA refletem a eficiência do atendimento e devem ser constantemente auditados para se identificar oportunidades de melhoria nos cuidados de saúde, com impacto no prognóstico dos pacientes. As diretrizes atuais e protocolos em SCA têm reforçado a importância da adesão a programas de melhoria de qualidade, como demonstrado no presente estudo, baseado em 3 pilares: o estreitamento entre os serviços de atendimento pré-hospitalar e os serviços de emergência intra-hospitalares; a difusão e adesão aos protocolos de dor torácica e síndrome coronariana aguda conforme orientação de diretrizes internacionais e, por fim, a educação e sensibilização para a saúde cardiovascular na comunidade, reforçando inclusive os sintomas e incidência da SCA nas mulheres. 

   

Entretanto, o presente estudo demonstrou que, mesmo a implementação do Programa Nacional de Dor Torácica, associada a melhora de indicadores de qualidade, não reduziu a diferença de mortalidade e do uso de medicamentos, entre pacientes do sexo masculino e do sexo feminino. Esse fato parece ter relação com questões culturais históricas, políticas e econômicas e deve ser trabalhado por meio da conscientização e educação médica e da sensibilização da comunidade científica não somente quanto às disparidades biológicas entre os sexos, mas também quanto às importantes discrepâncias na condução do diagnóstico e do tratamento das doenças cardiovasculares entre homens e mulheres. 

Referência

  1. Zhou S, Zhang Y, Dong X, et al. Sex Disparities in Management and Outcomes Among Patients With Acute Coronary Syndrome. JAMA Netw Open. 2023;6(10):e2338707. doi:10.1001/jamanetworkopen.2023.38707 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia

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