O quê?
O estudo Impact of Complete Revascularization in the ISCHEMIA Trial foi um subestudo pré-especificado do ensaio clínico ISCHEMIA (International Study of Comparative Health Effectiveness with Medical and Invasive Approaches). Dentre os pacientes com doença arterial coronariana (DAC) crônica sem revascularização do miocárdio prévia, randomizados para tratamento invasivo (INV) (cirúrgico ou percutâneo) versus tratamento conservador (CON) no estudo original, os autores avaliaram prospectivamente: 1) os resultados da revascularização anatômica completa (RAC) ou da revascularização funcional completa (RFC) comparados com revascularização incompleta; e 2) o impacto potencial da revascularização completa (RC) em todos os pacientes no braço intervenção em comparação com o manejo conservador.
Por quê?
No contexto das doenças coronarianas crônicas, os estudos de intervenção com cirurgia de revascularização do miocárdio (CRM) e/ou intervenção coronária percutânea (ICP) não têm demonstrado redução nos desfechos de morte cardiovascular ou infarto agudo do miocárdio (IAM) em comparação com terapia medicamentosa otimizada. Esse resultado foi reforçado com a publicação do estudo ISCHEMIA. Nele, 5179 pacientes com DAC crônica e pelo menos isquemia moderada foram randomizados para estratégia invasiva (angiografia associada a ICP ou CRM + tratamento medicamentoso otimizado) versus estratégia conservadora com tratamento medicamentoso otimizado. Não houve diferença nas taxas de IAM e morte cardiovascular entre os grupos INV e CON em um seguimento médio de aproximadamente 3 anos. Um fator que pode ter contribuído para estes resultados neutros é o não alcance da RC de todos segmentos de artéria coronária doentes. Tal estratégia tem se mostrado recorrentemente eficaz na redução de desfechos cardiovasculares das síndromes coronarianas agudas, em especial nos pacientes com IAM com elevação do segmento ST e doença multiarterial.
Como?
Foram avaliados dois objetivos principais. A coorte do Objetivo 1 (avaliação da frequência e do impacto da revascularização completa versus revascularização incompleta do braço intervenção) avaliou todos os pacientes submetidos a intervenção (revascularização com ICP; incluindo procedimentos planejados em etapas; CRM; ou uma abordagem híbrida com ICP planejada mais CABG) em até 6 meses após sua inclusão no estudo ou antes de apresentar um desfecho. Foi feita uma avaliação para revascularização completa por critérios anatômicos (lesões coronarianas ≥ 50% em vasos com ≥ 2mm de diâmetro) ou funcionais (as lesões coronarianas em vasos ≥ 2mm e uma combinação de gravidade da estenose e certeza da localização da isquemia – seja por testes invasivos ou não invasivos para lesões < 50%; ou por teste ergométrico positivo com lesão ≥ 60%; ou por qualquer lesão ≥ 70%). Nesse caso, eram considerados tratamento completo todos os vasos que se encaixavam nos critérios acima.
A coorte do Objetivo 2 (avaliação da quantidade/completude de vasos revascularizados versus pacientes em tratamento clínico) incluiu todos os pacientes do braço intervenção nos quais era possível avaliar a extensão da revascularização e comparou aos pacientes do braço conservador.
O resultado primário pré-especificado para a presente análise foi o composto de morte cardiovascular ou infarto do miocárdio em 4 anos, desfechos esses mais provavelmente afetados pela RC. Foram utilizadas análises por escore de propensão ponderadas pelas probabilidades de tratamento invertidas (IPTW – inverse probability of treatment weigthing) a fim de ajustar para confundidores. Nesta técnica, os pacientes recebem uma probabilidade de 0 a 1 de ter recebido um tratamento, e as análises são ajustadas por este escore, tentando com isso mitigar o viés de seleção e mimetizar um estudo randomizado.
Estrutura PICOT
Population: Pacientes doença coronariana crônica
Intervention: revascularização coronariana completa
Control: revascularização incompleta ou tratamento clínico medicamentoso
Outcome: morte cardiovascular ou IAM
Time: 4 anos
E aí?
Do total de pacientes revascularizados no estudo ISCHEMIA, apenas 43,4% e 58,4% fizeram revascularização completa baseada em critérios anatômicos e funcionais, respectivamente. Pela análise multivariada, os preditores clínicos independentes de ambos RAC e RFC incluíram somente diabetes mellitus e IMC baixo. Preditores angiográficos independentes de RC incluíram doença coronariana menos extensa (menor número de vasos doentes e/ou lesões por vaso, menor pontuação SYNTAX, entre outros) e lesão de tronco de coronária esquerda. De maneira interessante, sexo, idade, extensão de isquemia e disfunção ventricular não foram preditores para revascularização completa. Ainda, a CRM, mas não ICP, foi preditora independente relacionada a revascularização completa.
Quanto aos desfechos clínicos na coorte de intervenção, nas análises não ajustadas, tanto a RAC quando RFC quando comparadas com a revascularização incompleta foram associados com taxas reduzidas de morte CV ou infarto No entanto, depois do ajuste para as diferenças nas características clínicas e anatômicas em pacientes com revascularização completa vs revascularização incompleta, não houve menor ocorrência de eventos com a RC.
Em relação ao objetivo 2, quando comparados os 2296 pacientes do braço intervenção com revascularização completa versus 2498 pacientes da estratégia conservadora do estudo ISCHEMIA, a diferença na taxa de eventos foi -2,4% (IC 95%: -4.5% a – 0.2%). Após a análise pela IPTW, a revascularização ANATÔMICA completa, em comparação a estratégia conservadora, foi associada a uma taxa mais baixa de morte cardiovascular ou IAM em 4 anos (diferença – 3,5; IC 95%: -7,2% a 0,0%).
E agora?
A revascularização completa tem sido tema de discussão recorrente no contexto da DAC. Em pacientes com IAM com supra de ST, a redução de desfechos cardiovasculares como resultado da RC foi claramente comprovada e já é incorporada pelas mais atuais diretrizes internacionais. Recentemente, inclusive, nossos revisores comentaram nesse canal o estudo FIRE, que sugeriu que este benefício também se estende a pacientes com IAM sem supra de ST e DAC multiarterial incluindo, ainda, aqueles com mais de 75 anos, nos quais as taxas de complicação poderiam ser piores.
Os dados relacionados a RC nos pacientes com DAC crônica são de grande importância na prática clínica, tanto por questões de custos quanto pelos riscos clínicos que os procedimentos invasivos acarretam. A revascularização completa foi realizada, a critérios dos investigadores, em aproximadamente 50% dos pacientes do braço intervencionista do estudo ISCHEMIA. Apesar de promissor, os resultados do presente estudo devem ser vistos com cautela, uma vez que a redução do risco de morte cardiovascular e IAM em 4 anos no grupo RC comparado ao tratamento clínico não só foi atenuada como perdeu significância estatística após ajuste para confundidores, como extensão e complexidade da DAC.
Outro dado que chama a atenção nessa análise do ISCHEMIA, foi a superioridade da revascularização guiada por anatomia e não por avaliação funcional, como defendido por estudos prévios como o FAME (Fractional Flow Reserve versus Angiography for Multivessel Evaluation). No entanto, dados publicados do próprio estudo ISCHEMIA já mostravam que a extensão da DAC esteve mais fortemente relacionada com morte e IAM do que a gravidade funcional da isquemia. O paradoxo, portanto, continua. Entender o real impacto e diferença das estratégias de RC anatômica versus funcional é imprescindível, uma vez que afeta não só o prognóstico, mas também a utilização de recursos em saúde.
Portanto, vistos com cautela, os resultados do ISCHEMIA COMPLETEM sugerem que a revascularização completa, especialmente baseada em critérios anatômicos, pode ser considerada para melhora do prognóstico em pacientes com DAC crônica.