O quê?
O estudo SELECT (Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Obesity without Diabetes) foi um estudo randomizado, multicêntrico e duplo-cego que incluiu pacientes obesos ou com sobrepeso e não diabéticos, com infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) ou doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) prévios. O estudo teve como objetivo avaliar o uso da semaglutida subcutânea, na dose-alvo de 2,4mg, para a redução de novos eventos cardiovasculares (CV) associados à obesidade.
Por quê?
A obesidade é descrita atualmente como uma doença de proporções epidêmicas, que afeta em torno de 50% da população em todo o mundo. Reconhecida como uma patologia que merece tratamento específico, a obesidade contribui para as doenças cardiovasculares diretamente por meio de inflamação, ativação plaquetária, entre outros; e indiretamente por se associar a fatores de risco clássicos como o diabetes mellitus, a dislipidemia e a hipertensão arterial sistêmica. Os medicamentos agonistas do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1) sabidamente levam à perda de peso substancial – próxima àquela associada à cirurgia bariátrica – e reduzem o risco de doenças cardiovasculares, especificamente em pessoas com diabetes. Entender como a perda de peso motivada pelo uso da semaglutida impactaria na prevenção secundária de desfechos cardiovasculares em pacientes obesos e sem diabetes era, portanto, imprescindível.
Como?
Pacientes com mais de 45 anos e índice de massa corpórea (IMC) ≥ 27kg/m2 foram avaliados quanto a um evento cardiovascular prévio/índice que deveria ser: IAM, AVC ou DAOP (descrita como doença arterial periférica sintomática, confirmada por claudicação intermitente com índice tornozelo-braquial <0,85; procedimento de revascularização de vaso periférico ou amputação por doença aterosclerótica). Pacientes com histórico de diabetes mellitus tipo 1 ou 2, hemoglobina glicada (HbA1c) ≥ 6,5%, histórico de pancreatite crônica, doença renal terminal, entre outros, foram excluídos do estudo.
Os sujeitos de pesquisa foram então randomizados para semaglutida na dose de 2,4mg, subcutânea, 1 vez por semana versus placebo. É importante ressaltar que houve um escalonamento da dose até o alvo de 2,4mg, sendo ajustado conforme a tolerância do paciente a cada 4 semanas: 0,24 mg (valor 8 no contador de doses) à 0,5mg (valor 17 no contador de doses) à 1mg (valor 34 no contador de doses) à 1,7mg (valor 57 no contador de doses) à 2,4mg (valor 80 no contador de doses).
O desfecho primário de eficácia do estudo foi a primeira ocorrência de qualquer componente do composto de morte por causa cardiovascular, AVC ou IAM (Major adverse cardiovascular events – MACE). Os desfechos secundários confirmatórios foram avaliados em análises de “tempo até o primeiro evento” e testados em ordem hierárquica (apenas se o desfecho anterior atingisse a significância para superioridade): morte por causas cardiovasculares; desfecho composto de insuficiência cardíaca (morte por causas cardiovasculares ou hospitalização ou consulta médica urgente) ou morte por qualquer causa. Vale destacar entre os eventos secundários de suporte: a análise individual dos eventos de IAM e AVC não fatais, desfechos de nefropatia, evolução para DM2 ou pré-DM2 e impacto em peso, circunferência abdominal, pressão arterial, perfil lipídico, qualidade de vida, entre outros.
Estrutura PICOT
Population: IMC > 27kg/m2, não diabéticos, com doença CV prévia
Intervention: Semaglutida 2,4mg, subcutânea, 1 vez por semana
Control: Placebo, subcutâneo, 1 vez por semana
Outcome Morte CV, infarto ou AVC
Time Cerca de 40 meses
E aí?
Entre outubro de 2018 e março de 2021, 17604 pacientes foram incluídos no estudo, sendo 8803 randomizados para o braço semaglutida e 8801 no braço placebo. A idade média dos pacientes foram 61 anos e em torno de 72% eram do sexo masculino e 84% brancos. O IMC médio de entrada foi de 33 kg/m2 (entre 28-29% dos pacientes tinha sobrepeso) e por volta de 66% dos pacientes tinha a HbA1c≥ 5,7% (média no estudo 5,8%). Aproximadamente 67% dos pacientes tiveram o IAM como seu evento índice de entrada no estudo, seguido por AVC (17%).
O desfecho primário composto MACE ocorreu em 569 dos 8.803 pacientes (6,5%) no grupo semaglutida e em 701 dos 8.801 pacientes (8,0%) no grupo placebo (hazard ratio [HR] 0,80; intervalo de confiança [IC] de 95%, 0,72 a 0,90; P<0,001). Na análise hierárquica dos desfechos confirmatórios secundários, o primeiro deles, morte cardiovascular, ocorreu em 223 pacientes (2,5%) no grupo semaglutida e em 262 pacientes (3,0%) no grupo placebo (HR 0,85; IC 95%, 0,71 a 1,01; P=0,07). Como o valor P exigido para testes hierárquicos não foi atingido nesse primeiro desfecho, o teste de superioridade não foi realizado para os demais desfechos secundários.
O desfecho composto secundário de insuficiência cardíaca teve um HR 0,82 (IC 95%, 0,71 a 0,96), e o desfecho de morte por qualquer causa teve HR 0,81 (IC 95%, 0,71 a 0,93). Os desfechos secundários de suporte individuais como IAM não fatal (HR 0,72; IC 95% 0,61 a 0,85) e necessidade de revascularização coronariana (HR 0,77; IC 95% 0,68 a 0,87) também favoreceram a semaglutida.
A variação média do peso corporal ao longo de aproximadamente 26 meses após a randomização foi de –9,39% com semaglutida e –0,88% com placebo (diferença estimada de tratamento, –8,51 pontos percentuais atribuídos à semaglutida; IC 95%, –8,75 a –8,27). Os pacientes apresentaram ainda uma redução em torno de 6,5cm da circunferência abdominal, 2,7% no colesterol total e 15,6% nos níveis de triglicérides, atribuíveis à semaglutida.
A descontinuação permanente do medicamento em 1.461 pacientes (16,6%) no grupo semaglutida e 718 pacientes (8,2%) no grupo placebo grupo (P<0,001), motivadas principalmente por desfechos gastrointestinais. É importante ressaltar, ainda, que 96,9% dos pacientes completaram o estudo e o status vital era conhecido em 99,4% da população do estudo.
E agora?
Os análogos GLP-1, especialmente a semaglutida, já haviam demonstrado perda de peso considerável e redução de desfechos cardiovasculares em pacientes diabéticos. Porém, o efeito da semaglutida parece ir além da perda ponderal. No presente estudo, apesar da maioria dos pacientes estar em tratamento adequado para os demais fatores de risco modificáveis (ex: 90% em uso de medicamentos hipolipemiantes), bem como em uso de tratamento para prevenção secundária de eventos cardiovasculares, observou-se a ocorrência de MACE em 8% da população no grupo placebo. Isso parece estar relacionado ao risco residual da doença aterosclerótica, representando “o mundo real” e presente mesmo quando existe controle próximo ao ótimo das variáveis de risco (como níveis aproximados de LDL de 78 mg/dl e pressão arterial 131×79 mmHg). Nesse sentido, o presente estudo demonstrou redução global dos desfechos iniciada antes mesmo das 12 semanas necessárias para se atingir a dose alvo do estudo.
A redução do peso por meio do controle do apetite e saciedade não somente interfere no controle glicêmico, lipídico e até pressórico, como reduz a deposição de gordura intra-abdominal (da circunferência abdominal), perivascular e epicárdica, além da inflamação sistêmica, reduzindo o risco cardiovascular. É importante ressaltar que, durante toda a execução do estudo, os pacientes foram acompanhados de forma intensiva quanto às orientações de mudança de estilo de vida, sendo estimulados a realizar atividade física e reeducação alimentar (inclusive durante a pandemia). O estudo foi conduzido principalmente por cardiologistas e endocrinologistas. Porém, a perda de peso no grupo placebo foi de apenas 0,8% do peso basal, o que mostra uma importante falha nas estratégias atuais implementadas e uma real necessidade de políticas públicas (habilidades e técnicas da ciência do comportamento para gerenciar mudanças de estilo de vida) que gerem engajamento adequado e resultados consistentes e persistentes.
O estudo SELECT, no entanto, apresenta limitações que devem ser ressaltadas e discutidas. Mais uma vez, houve baixa representatividade de mulheres e negros, população que tem a obesidade tão prevalente em seu meio e para quem ainda não temos respostas consistentes sobre terapias eficazes. Ainda, apesar da demonstração de que a redução dos desfechos foi independente do nível da HbA1c, a maioria dos pacientes do estudo eram pré-diabéticos, o que traz por si um maior risco cardiovascular a essa população. Assim, o uso irrestrito dos análogos da GLP-1 por pacientes de menor risco e sobrepeso deve ser evitada e pensada à luz das evidências atuais. Importante ressaltar que a medicação foi segura quanto aos desfechos adversos que classicamente geram preocupação com medicamentos da classe (como pancreatite ou neoplasia tireoidiana).
Portanto, à luz dos resultados atuais, fica claro a importância do tratamento dos fatores de risco especialmente após um primeiro evento cardiovascular. A semaglutida se provou uma medicação promissora a ser considerada na prática do cardiologista, porém se trata de uma estratégia medicamentosa de prevenção adicional àquelas classicamente estabelecidas. Devemos ressaltar que o custo ainda é um limitador para o seu uso e que o tratamento da obesidade deve fazer uso das atuais medicações em mercado, mas se basear também nas clássicas (e talvez não tão bem estimuladas) mudanças de estilo de vida.