Renato Lopes, da Duke University: “Transformar dados em informação é o maior gargalo das evidências de mundo real” - MDHealth - Educação Médica Independente
terça-feira dez 3, 2024

Renato Lopes, da Duke University: “Transformar dados em informação é o maior gargalo das evidências de mundo real”

Escrito por: MDHealth em 24 de março de 2023

7 min de leitura

Estudos que utilizam dados do mundo real são apontados como tendência, mas ainda é preciso estruturar os sistemas de saúde ao redor do mundo para viabilizar essa prática

A utilização de dados do mundo real (RWD) tem sido apontada como uma tendência do setor, mas ainda precisa ser viabilizada na prática. É o que aponta Renato Lopes, professor da Divisão de Cardiologia da Duke University, nos Estados Unidos, e de Cardiologia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM–UNIFESP).

Ele também é fundador e diretor-executivo do Brazilian Clinical Research Institute (BCRI), que, em conjunto com a Galen Academy e a MDHealth, promoveu na noite de quarta-feira, 22, 1° Fórum Internacional sobre Real-World Evidence (RWE ou “evidências de mundo real”, em português) em São Paulo, SP. O objetivo do evento foi debater como a captação e análise de dados fora do contexto das pesquisas clínicas tradicionais pode ajudar a responder às mais diversas perguntas da medicina e da ciência de forma mais rápida.

Em entrevista para Futuro da Saúde, Lopes lembrou que a pandemia acelerou pesquisas e a implementação de tecnologias na saúde e abriu portas para uma discussão mais avançada sobre a possibilidade de uso dos RWDs. Contudo, ainda é preciso pensar em mudanças estruturais na saúde como um todo para avançar rumo à criação de valor desses dados de forma mais consistente:

“Esse ainda é um tema muito complexo. Reunir especialistas e trocar experiências é o primeiro passo para traçar cenários e chegar aonde queremos. A discussão deve envolver perspectivas de players como academia, indústria farmacêutica, agências regulatórias e fontes pagadoras, além das experiências de outros países, tanto aqueles que têm desafios semelhantes aos nossos, quanto os mais bem preparados para essas mudanças, e que já são exemplos de uso de evidências do mundo real”.

Confira a entrevista completa:

Como você define as evidências do mundo real?

Renato Lopes – Esse é um tópico importante, porque ainda há muita confusão a respeito desse tema. Há um movimento mundial em direção a um desenho diferente de estudos, que buscam entender como determinado medicamento, dispositivo ou tratamento se comporta fora do ambiente controlado dos ensaios clínicos. Por isso se chama ‘mundo real’.

Na prática, quais são as diferenças entre os estudos?

Renato Lopes – Os ensaios randomizados são o padrão ouro para responder a determinados tipos de perguntas: se quero saber se uma droga funciona bem, se um remédio é melhor que o outro ou se um dispositivo funciona. O estudo clínico randomizado implica causalidade por meio de uma intervenção. A desvantagem é que esse tipo de estudo é complexo, demorado e caro, além de ser feito com base em critérios rigorosos de participação. As respostas obtidas são ótimas para aprovar novos tratamentos, por exemplo. Mas o que acontece quando a droga chega à população geral, que é mais diversa? É isso que as evidências do mundo real mostram.

Como as evidências de mundo real são coletadas?

Renato Lopes – São acionados bancos de dados que não foram necessariamente criados com finalidade de pesquisa, mas que têm informações completas para obter respostas de uma pergunta latente da ciência e da medicina, como: de que forma uma droga está sendo oferecida, quais efeitos colaterais tem apresentado, quais são os efeitos de longo prazo? Nós analisamos dados retrospectivos, que já foram coletados sem nenhuma intervenção.

Quais são as fontes possíveis para captação desses dados?

Renato Lopes – Exemplos de RWD incluem dados derivados de registros eletrônicos de saúde, dados de reivindicações médicas, dados de registros de produtos ou doenças e dados coletados de outras fontes (como tecnologias digitais de saúde) que podem informar sobre o estado de saúde dos pacientes. Há também o DATASUS e outros dados governamentais, de faculdades, pesquisas de investigadores em registros nacionais. As fontes são inúmeras.

O que é possível fazer a partir das respostas obtidas por meio desses estudos?

Renato Lopes – Podemos fazer um acompanhamento da farmacovigilância, por exemplo: um estudo pode mostrar que 50% dos pacientes que deveriam estar tomando 5mg de uma droga estão usando apenas metade disso e essa baixa dosagem tem se mostrado ineficaz. Com essa informação, eu posso fazer uma ação de conscientização e treinamento para que os médicos passem a receitar a dosagem correta. Sou capaz de gerar mais conhecimento e em tempo real. Em outros casos, posso ter uma resposta mais rápida – considerando que um estudo clínico padrão leva de dez a 15 anos para chegar a alguma conclusão, podemos ter respostas em questão de meses com o estudo do mundo real. A verdade é que as pesquisas clínicas vêm evoluindo e precisamos de estudos com mais diversidade, mais baratos, mais pragmáticos e com respostas semelhantes às de um ensaio randomizado. E os dados do mundo real aparecem como facilitadores dessa questão.

Os ensaios clínicos e os estudos de mundo real podem se complementar?

Renato Lopes – Com certeza. Inclusive, um movimento forte que tem surgido é de utilizar a forma híbrida de fazer pesquisas. Trata-se do modelo mais moderno que existe hoje, que consiste em acessar dados de mundo real que estão sendo coletados e inserir uma randomização para responder a uma pergunta específica. Se quero testar uma droga que já existe, em vez de montar um ensaio inteiro, do zero, uso os registros nacionais que já estão em andamento e insiro a randomização.

Há algum exemplo desse método?

Renato Lopes – Na pandemia nós fizemos um estudo como esse no Brasil, que foi intitulado BRACE CORONA. A pergunta a ser respondida era se havia a necessidade de interromper o uso de remédio para pressão alta, com a teoria de que o seu uso poderia gerar maior chance de o paciente sofrer com uma infecção mais grave, caso em contato com o vírus. Fizemos a pesquisa em 35 hospitais, nos quais já existia um registro em andamento com pacientes internados, e inserimos a randomização nesse contexto: metade dos participantes seguiu tomando os remédios para seus problemas crônicos, enquanto a outra metade foi suspensa de seus medicamentos cotidianos. Em seis meses tivemos a resposta e pudemos dividir o resultado com o mundo: não era preciso suspender a medicação, pelo contrário, continuar com o remédio levava até a uma discreta melhora do quadro. Esse é um excelente exemplo de estudo híbrido: ausência de critérios de inclusão, ambiente que não é completamente controlado e mais pacientes envolvidos.

Apesar de promissor, ainda não há uma regulamentação para esse tipo de estudo, certo? Por que isso acontece e quais são os desafios desse setor?

Renato Lopes – Ainda precisamos entender a melhor forma desses dados serem obtidos facilmente e o grande desafio será transformar os dados em uma informação que precisa ser estruturada, interligada e que permita a tomada de uma conduta. Para isso, é preciso investimentos públicos e privados e uma mudança de paradigmas de agências regulatórias, da academia, indústria farmacêutica e de dispositivos e as agências de fomento. Um dos problemas é que o Brasil, por exemplo, não tem tradição em coletar esses dados em nível nacional e de forma estruturada e esse é o maior gargalo de hoje.

Algum país já está mais avançado nesse quesito?

Renato Lopes – Muita gente está tentando chegar nesse mundo ideal, todo mundo está tentando fazer a transformação de dados em informação para melhorar o sistema de saúde, mas ninguém conseguiu ainda, pelo menos não de maneira 100% concreta. O país mais avançado nesse quesito é a Suécia, que lançou o modelo híbrido de estudos. Há uma facilidade porque se trata de um país pequeno, estruturado e que conta com um prontuário eletrônico unificado. Eles estão à frente e mostrando que é possível.

De que forma essa busca pela utilização das evidências do mundo real deve impactar o sistema de saúde de forma geral?

Renato Lopes – A necessidade de estruturação do sistema para fazer uso desses dados vai forçar uma mudança de mentalidade e paradigma na saúde. Só vamos conseguir avançar se soubermos o que estamos fazendo e de maneira bem estruturada. Isso, por si só, já significa uma mudança em direção a uma melhor assistência. Afinal, onde há estrutura, há uma melhor prática.

Por que reunir diferentes atores para discutir esse tema? O que marca esse primeiro fórum internacional sobre as evidências de mundo real?

Renato Lopes – A proposta foi criar um ambiente fértil para entender quais são os caminhos possíveis. A interação com o Federal Drug Administration (FDA), agência reguladora dos EUA, é extremamente importante para entendermos onde eles estão em termos de regulação, em comparação com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Devemos aproveitar as experiências internacionais para nos apoiarmos, ganhando tempo e eficácia nos processos brasileiros. Reunir diferentes países, perspectivas e atores para discutir um tópico complexo na mesma mesa é um passo importante. É uma conscientização do problema de forma coletiva, para errarmos menos e mudarmos o que precisa ser mudado de maneira assertiva. Esse é o grande objetivo.

Entrevista realizada pelo Futuro da Saúde. Acesse a matéria em: https://futurodasaude.com.br/renato-lopes-evidencias-vida-real/