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Empagliflozina e Glicogenose tipo Ib

Escrito por: Fabiano de Oliveira Poswar em 20 de junho de 2024

5 min de leitura

novo estudo confirma benefícios na doença inflamatória intestinal 

 

O quê? 

Trata-se de um estudo prospectivo, de braço único e aberto realizado no Guangdong Provincial People’s Hospital para avaliar os efeitos da empagliflozina na doença inflamatória intestinal (DII) em pacientes com glicogenose tipo Ib. 

 

Por quê? 

As glicogenoses (GSDs – do inglês glicogen storage diseases) são um grupo de doenças genéticas decorrentes da disfunção do metabolismo do glicogênio. A glicogenose Ib (GSD Ib), em particular é causada por um defeito no transportador da enzima glicose 6 fosfatase, codificada pelo gene SLC37A4. Pacientes com GSD Ib apresentam um comprometimento da glicenólise e gliconeogênese, resultando em hipoglicemia, hepatomegalia, dislipidemia e aumento de lactato. Além disso, os pacientes apresentam neutropenia e DII, características que auxiliam a distingui-la clinicamente da GSD Ia (decorrente da deficiência da isoforma hepática da enzima glicose 6 fosfatase – codificada pelo gene G6PC). O quadro mais grave da GSD Ib se explica pelo comprometimento simultâneo no transporte da isoforma ubíqua da glicose 6 fosfatase (G6PC3), cuja deficiência isolada está relacionada a uma neutropenia grave congênita.  

A causa da neutropenia relacionada ao G6PC3 foi elucidada em 2019 e se deve à dificuldade de eliminação da forma fosforilada de um açúcar análogo da glicose (o 1,5 anidroglucitol 6 fosfato – 1,5-AG6P) (Veiga et al., 2019).  Pouco após essa descoberta, foi proposto que a empagliflozina, um inibidor da proteína de transporte sódio glicose renal (SLGT1), capaz de promover a remoção do 1,5-AG6P, pudesse resultar em melhora da neutropenia e da DII em pacientes com GSD Ib (Wortman et al., 2020). Desde então, novos estudos têm buscado se aprofundar sobre os efeitos da empagliflozina nesses pacientes. 

 

Como? 

Foram recrutados pacientes entre 1 e 18 anos com GSD Ib, confirmada por teste genético e DII diagnosticada por endoscopia. Foram excluídos pacientes com alterações de sinais vitais, alergia a empagliflozina, insuficiência renal, hepática ou cardíaca, tuberculose ativa, câncer e outras condições que pudessem afetar a condução do estudo. A atividade da doença foi classificada utilizando o índice de atividade da doença de Crohn pediátrico (PCDAI) e sua versão ponderada (wPCDAI). A atividade endoscópica e histológica da doença foi avaliada pelo escore de atividade endoscópica simplificado para a doença de Crohn (SES-CD) e pelo método de Geboes. Os pacientes incluídos receberam empagliflozina na dose de 0,25 a 0,50 mg/kg/dia por 48 semanas, com ligações telefônicas a cada 12 semanas. Todos os pacientes mantiveram tratamento dietético com amido de milho cru ao longo do estudo. Ao final das 48 semanas, os pacientes foram submetidos a nova endoscopia com biópsia. 

 

Estrutura PICOT 

Population: GSD Ib com DII confirmada por endoscopia. 

Intervention: Empagliflozina 0,25 a 0,50 mg/kg/dia 

Control: Estudo de braço único 

Outcome: Desfecho primário: melhora endoscópica. Desfechos secundários: Mudança nos escores PCDAI e wPCDAI, resultados de exames laboratorias e eventos adversos. 

Time: 48 semanas 

 

E aí? 

Ao total, oito pacientes foram incluídos no estudo, com idade média de 10,34 anos, quatro do sexo feminino e quatro do sexo masculino. Dos oito participantes, dois receberam o tratamento de forma intermitente, por menos de oito semanas. Os resultados foram avaliados em relação à amostra completa dos oito participantes. 

Após as 48 semanas, os pacientes apresentaram melhora ou resolução das úlceras mucosas, hiperplasia inflamatória, estenose e obstrução. Houve redução significativa no escore endoscópico SES-CD em comparação com o período basal (7,25 ± 5,80 vs 14,25 ± 7,25; P = 0,046), assim como nos escores Geboes, PCDAI e wPCDAI. Clinicamente, os pacientes apresentaram redução dos sintomas de anorexia, dor abdominal e diarreia. Os benefícios foram observados em cinco dos seis pacientes que receberam o tratamento pelo tempo completo e não foram ocorreram em nenhum dos dois que não completaram o tratamento. Um paciente não teve melhora apesar de ter realizado o tratamento completo. Apesar de a empagliflozina estar associada a ocorrência de hipoglicemia, elas foram menos frequentes nos pacientes durante o estudo do que nos 12 meses anteriores (1.13 episódios/ano ± 1,73 vs 3,13 episódios/ano ± 0,83; p = 0,003). Um dos participantes descontinuou o tratamento devido a sudorese intensa e infecção do trato urinário. Nenhum dos participantes apresentou eventos adversos sérios.  

 

E agora? 

Como em outras glicogenoses hepáticas, os pacientes com GSD Ib realizam uma dieta especial com uso regular de amido cru para a prevenção de hipoglicemia e dos efeitos danosos do acúmulo de glicogênio no fígado. Além disso, por causa do quadro imunológico associado, os pacientes são comumente tratados com filgrastim (G-CSF) para aumentar a produção de neutrófilos, o que nem sempre se reflete em melhora da DII. Embora a causa da DII não esteja totalmente explicada, uma das hipóteses mais aceitas é que ela seja decorrente mais de uma disfunção dos neutrófilos do que simplesmente sua redução numérica.  

Desde o primeiro estudo que propôs a utilização da empagliflozina em pacientes com GSD Ib, mais de 110 pacientes receberam esse tratamento, que se tornou uma alternativa em substituição ou associação ao uso do filgrastim (Grunert et al., 2024). Entretanto, a maior parte dos trabalhos publicados foram realizados de forma retrospectiva e não incluíram uma avaliação padronizada endoscópica e histológica da DII. 

O estudo de grupo de Guangdong reforça os efeitos terapêuticos da empagliflozina na DII de pacientes com GSD Ib, com melhora acentuada em parâmetros endoscópicos e histológicos em cinco dos oito pacientes incluídos. Entretanto, algumas questões permanecem não completamente elucidadas, como a existência de características individuais que expliquem a falta de resposta terapêutica em um dos participantes. Além disso, a empagliflozina também apresentou uma adesão e tolerabilidade limitadas, com dois pacientes não completando o tratamento proposto. Estudos adicionais deverão auxiliar na definição da dose ideal, na descricação dos efeitos do uso de longo prazo e na definição de quais pacientes com GSD Ib melhor se beneficiam do uso do medicamento.  

Referências

  1. Grünert, S. C., Derks, T. G. J., Mundy, H., Dalton, R. N., Donadieu, J., Hofbauer, P., Jones, N., Uçar, S. K., LaFreniere, J., Contreras, E. L., Pendyal, S., Rossi, A., Schneider, B., Spiegel, R., Stepien, K. M., Wesol-Kucharska, D., Veiga-da-Cunha, M., & Wortmann, S. B. (2024). Treatment recommendations for glycogen storage disease type IB- associated neutropenia and neutrophil dysfunction with empagliflozin: Consensus from an international workshop. In Molecular Genetics and Metabolism (Vol. 141, Issue 3, p. 108144). Elsevier BV. https://doi.org/10.1016/j.ymgme.2024.108144 

  2. Li, Z., Zhang, X., Chen, H., Zeng, H., Wu, J., Wang, Y., Ma, N., Lan, J., Zhang, Y., Niu, H., Shang, L., Jiang, X., & Yang, M. (2024). Empagliflozin in children with glycogen storage disease-associated inflammatory bowel disease: a prospective, single-arm, open-label clinical trial. In Scientific Reports (Vol. 14, Issue 1). Springer Science and Business Media LLC. https://doi.org/10.1038/s41598-024-59320-z 

  3. Veiga-da-Cunha, M., Chevalier, N., Stephenne, X., Defour, J.-P., Paczia, N., Ferster, A., Achouri, Y., Dewulf, J. P., Linster, C. L., Bommer, G. T., & Van Schaftingen, E. (2019). Failure to eliminate a phosphorylated glucose analog leads to neutropenia in patients with G6PT and G6PC3 deficiency. In Proceedings of the National Academy of Sciences (Vol. 116, Issue 4, pp. 1241–1250). Proceedings of the National Academy of Sciences. https://doi.org/10.1073/pnas.1816143116 

  4. Wortmann, S. B., Van Hove, J. L. K., Derks, T. G. J., Chevalier, N., Knight, V., Koller, A., Oussoren, E., Mayr, J. A., van Spronsen, F. J., Lagler, F. B., Gaughan, S., Van Schaftingen, E., & Veiga-da-Cunha, M. (2020). Treating neutropenia and neutrophil dysfunction in glycogen storage disease type Ib with an SGLT2 inhibitor. In Blood (Vol. 136, Issue 9, pp. 1033–1043). American Society of Hematology. https://doi.org/10.1182/blood.2019004465

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