Pesquisadores canadenses e fundação CureSPG50 divulgam resultado de um estudo inovador que avaliou em tempo recorde um novo tratamento para uma doença ultrarrara
O quê?
Trata-se de um ensaio clínico de paciente único, com o objetivo de avaliar a segurança e a eficácia preliminar de uma terapia gênica baseada em vírus adenoassociado (AAV) para um paciente único com paraparesia espástica hereditária 50 (SPG50).
Por quê?
As paraparesias espásticas hereditárias (PEH, HSPs ou SPGs) são um grupo de condições genéticas que se caracterizam por lesão progressiva do neurônio motor superior e tratos longos da coluna dorsal, resultando em sintomas de espasticidade de membros inferiores, hiperreflexia, reflexo cutâneo plantar extensor e redução da sensibilidade vibratória. Atualmente, há mais de 80 tipos de PEH descritos. A SPG50 é uma forma muito rara de PEH, com menos de 100 pacientes descritos. É também uma forma de PEH “complicada”, termo que corresponde à presença de sintomas adicionais à paraparesia, como atraso global do desenvolvimento, epilepsia, microcefalia, entre outros. Até o momento, não há um tratamento específico disponível para a SPG50 e o desenvolvimento de um novo tratamento poderia levar décadas. Nesse sentido, logo após o diagnóstico, a família do único paciente canadense com SPG50 decidiu criar a Fundação CureSPG50. Os esforços conjuntos da fundação e de pesquisadores do Hospital for Sick Children em Toronto no Canadá resultaram no desenvolvimento e administração de um produto de terapia gênica em menos de 3 anos.
Como?
Foi desenvolvida um produto de terapia gênica baseado no vetor scAAV9, adaptado de um vetor similar para CLN7 e neuropatia axonal gigante. O produto AAV9-AP4M1 foi primeiramente testado em modelos animais, com ótimos resultados. Para o ensaio clínico, foram observados parâmetros de segurança adaptados de ensaios clínicos anteriores com o mesmo tipo de vetor. O vetor foi administrado por via intratecal na dose de 1 × 10^15 vg. Foram utilizados imunossupressores antes e após a administração do tratamento (sirolimus, tacrolimus e prednisona). A segurança foi avaliada pelo registro de eventos adversos, além da realização de exames laboratoriais para avaliação hepática, hematológica e imunológica e de estudos de condução nervosa. A eficácia foi avaliada por meio da mudança na escala de espasticidade modificada de Ashworth e Tardieu. Além disso, escalas de desenvolvimento intantil (Bayley) e adaptativo (Vineland) foram utilizadas como desfechos exploratórios. O tempo de seguimento do estudo foi de um ano.
E aí?
Um menino acometido por SPG50 foi incluído no estudo, com idade inferior a 5 anos. O medicamento foi bem tolerado e não foram observados eventos adversos graves. O paciente, porém, apresentou um episódio de neutropenia transitória assintomática após 6 dias da terapia. Ele também teve sintomas abdominais prolongados atribuídos a efeitos colaterais do tacrolimus e uma infecção por C. difficile. Além disso, houve aumento sustentado de alanina aminotransferase e gama glutamil transferase, embora em níveis abaixo de 2 vezes o limite superior da normalidade. Em relação à eficácia, foi observado estabilização dos escores de espasticidade modificada de Ashworth e Tardieu. Além disso, houve ganhos no desempenho motor fino e grosso na escala de Vineland e melhora nos parâmetros de desenvolvimento da escala de Bayley, com exceção da comunicação expressiva.
E agora?
Pelas limitações do estudo ainda não é possível concluir de forma definitiva sobre a eficácia e segurança do AAV9-AP4M1. Entretanto, os bons resultados relatados trazem esperança para outras famílias afetadas por doenças ultrarraras. Atualmente, com terapias gênicas já disponíveis no mercado, a revisão e aprovação de novos ensaios clínicos por comitês de ética e agências de vigilância sanitária tendem a ser mais rápidas. De um modo particular, para o desenvolvimento desse produto, foi dispensada a realização de testes em animais de grande porte, com base em resultados de produtos similares. Experiências anteriores com estudos em pacientes únicos para outras condições raras, incluindo um ensaio clínico realizado no Brasil, também foram promissoras (de Souza et al., 2024). No entanto, uma barreira significativa persiste: o custo extremamente elevado do desenvolvimento de um novo medicamento, mesmo que seja para um único paciente. Até que esses custos possam ser reduzidos, novos estudos como esse continuarão difíceis de serem replicados em larga escala.