Transfusão em pacientes com infarto agudo do miocárdio - MDHealth - Educação Médica Independente

Transfusão em pacientes com infarto agudo do miocárdio

Escrito por: Remo H. M. Furtado em 14 de novembro de 2023

5 min de leitura

O quê?  

O estudo MINT  (Myocardial Ischemia and Transfusion) foi um ensaio clínico randomizado, multicêntrico, aberto com adjudicação cega de desfechos, que comparou duas estratégias transfusionais em pacientes com infarto agudo do miocárdio (IAM) e anemia.   

 

Por quê?  

A presença de anemia pode piorar a isquemia miocárdica em pacientes com IAM. Por outro lado, a transfusão pode acarretar riscos potenciais a estes pacientes, em virtude de aumento de viscosidade sanguínea, ativação imune e sobrecarga de volume causados pelos hemocomponentes. Enquanto a meta de hemoblogina (Hb) de 8,0 g/dL tem sido considerada em diversos cenários clínicos, como choque séptico, pacientes com IAM têm sido excluídos destes estudos. Portanto, a meta de Hb em pacientes com IAM ainda permanecia indefinida na literatura médica.  

 

Como?  

O estudo randomizou pacientes com IAM (incluindo tanto infarto tipo 1, ou seja, aquele causado por aterotrombose, como infarto tipo 2, aquele causado por desbalanço oferta-consumo de oxigênio) e anemia (Hb < 10 g/dL). Pacientes com sangramento não-controlado ou com indicação cirúrgica para tratamento do infarto foram excluídos. Os pacientes foram randomizados para duas estratégias.  O grupo controle consistia em manter o Hb > 8,0 g/dL (sendo fortemente recomendada a transfusão se Hb < 7,0, ou se entre 7,0-8,0 no caso de isquemia persistente), enquanto o grupo intervenção consistia em manter o Hb > 10,0 g/dL. Os pacientes recebiam transfusão de hemocomponentes conforme o alvo a que foram randomizados.  

O desfecho primário do estudo foi o composto de morte ou re-infarto em 30 dias. Os desfechos secundários foram os componentes individuais do desfecho primário, assim como o composto de morte, re-infarto, necessidade de revascularização coronária ou readmissão por uma condição cardíaca isquêmica em 30 dias. A ocorrência de infarto foi reportada pelos investigadores e validada por um comitê de eventos clínicos, cujos membros eram cegos à estratégia de transfusão à qual os pacientes haviam sido randomizados.  

 

Estrutura PICOT 
Population:  Pacientes com IAM + anemia (Hb < 10 g/dL)   
Intervention:   Manter Hb > 10 g/dL  
Control:  Manter Hb > 8 g/dL  
Outcome  Morte ou re-infarto  
Time  3 anos   

 

E aí?   

Foram incluídos e analisados 3504 pacientes, sendo 1749 randomizados para a estratégia restritiva (manter Hb > 8,0 g/dL) e 1755 para a estratégia liberal (manter Hb > 10,0 g/dL). A idade média era de 72 anos, 46% eram do sexo feminino, e 71% eram da raça branca. A maioria (81%) apresentavam infarto sem supradesnivelamento de ST (IAMSSST) como evento-índice, e 56% dos pacientes tinham IAM tipo 2. A Hb média na randomização foi de 8,6 g/dL.  

Nos primeiros 3 dias, o grupo estratégia liberal teve Hb médio de 10,5 g/dL versus 8,9 g/dL no grupo restritivo (diferença média 1,6 g/d; intervalo de confiança [IC] 95% 1,5 a 1,7). Além disso, o grupo liberal recebeu em média 2,5 unidades de concentrado de hemácias por paciente versus 0,7 no grupo restritivo. Após 30 dias de seguimento, 295 (16,9%) pacientes no grupo estratégia restritiva apresentaram o desfecho primário, versus 255 pacientes (14,5%) no grupo liberal (razão de risco [RR] comparando restritivo versus liberal 1,15; IC 95% 0,99-1,34; P = 0,07). A mortalidade em 30 dias foi de 9,9% versus 8,3%, respectivamente, nos grupos restritivo e liberal (RR 1,19; IC 95% 0,96-1,47), enquanto a incidência de re-infarto foi de 8,5% versus 7,2% (RR 1,19; IC 95% 0,94-1,49). Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos em outros desfechos. A estratégia liberal não se associou a aumento estatisticamente significativo na ocorrência de reações transfusionais.  

Os resultados foram consistentes em diversos subgrupos, independente do sexo, idade e no nível de Hb basal. Entre os pacientes apresentando IAM tipo 1, a estratégia restritiva pareceu se associar com maior ocorrência de morte ou re-infarto em 30 dias em comparação à estratégia liberal (18,2% versus 13,8% respectivamente; RR 1,32; IC 95% 1,04-1,67). Entre os pacientes com infarto tipo 2, não parece ter havido diferença entre as duas estratégias (RR 1,05; IC 95% 0,85-1,29).  

  

 

E agora?  

Anemia é uma condição que pode estar presente em até 20% dos pacientes com IAM sendo importante, além de se corrigir o nível de Hb, buscar sua causa específica, incluindo sangramento oculto. O nível ideal de Hb em pacientes com IAM sempre foi motivo de controvérsia e, neste sentido, os investigadores do estudo MINT devem ser congratulados por terem buscado o esclarecimento dessa importante questão de pesquisa.  

O estudo teve um desenho pragmático, simples, respondendo a uma pergunta clinicamente relevante, com potencial de impactar milhões de pacientes no mundo, já que a doença coronária é uma das principais causas de morte na população mundial. O desenho aberto, ou seja, tanto paciente quanto médico assistente sabiam o grupo de tratamento, poderia causa um viés de aferição para o desfecho re-infarto (isso não seria problema para mortalidade), mas os investigadores utilizaram a avaliação cega de desfechos a fim de mitigar este problema. Levando-se em conta a análise principal, o estudo não demonstrou uma diferença estatisticamente significativa entre as duas estratégias.  

Em um estudo que não encontra uma diferença estatisticamente significativa entre os grupos, algumas possíveis explicações seriam: tamanho amostral inadequado, diluição do efeito de tratamento e ausência real de efeito. No presente estudo, o número de pacientes e a taxa de eventos foram alcançados, tornando a primeira explicação improvável. O fato de análises estatísticas secundárias (como aquela que não ajustou para dados faltantes) terem sugerido benefício tornam a terceira explicação também improvável. Dito isso, a explicação mais plausível deve ter sido a diluição de efeito em virtude de os pacientes do grupo restritivo terem mantido Hb em média de 8,9 g/dL, isto é, bem acima do limiar para transfusão de 8,0 g/dL. Embora a análise de subgrupos baseada no nível de Hb basal não suporte isto, é possível que não seja totalmente seguro para o paciente apresentando um IAM manter um Hb < 9,0 g/dL. O achado de potencial benefício no subgrupo com infarto tipo 1 versus infarto tipo 2 demanda análises mais detalhadas, pois seria o oposto do esperado, de tal maneira que possa ter sido simplesmente um achado ao acaso.  

Em conclusão, uma estratégia liberal (manter Hb > 10,0 g/dL) não resultou em melhores desfechos clínicos em relação a uma estratégia mais restritiva (manter Hb > 8,0 g/dL) em pacientes com IAM. Entretanto, em virtude das observações acima colocadas, no IAM,  o nível ideal de Hb deve ser individualizado para cada paciente, levando-se em conta a estabilidade clínica, sinais de isquemia recorrente ou persistente, ou mesmo potenciais riscos associados à transfusão.  

Nota: O estudo MINT teve a participação do BCRI (Brazilian Clinical Reseach Institute) na liderança acadêmica, representado pelos pesquisadores Dr. Renato Lopes e Dr. Pedro Barros. Este fato é um motivo de grande orgulho para a Pesquisa Clínica brasileira!  

 

Referência

  1. REFERÊNCIA  

    Carson JL, Brooks MM, Hébert PC, Goodman SG, Bertolet M, Glynn SA, Chaitman BR, Simon T, Lopes RD, Goldsweig AM, DeFilippis AP, Abbott JD, Potter BJ, Carrier FM, Rao SV, Cooper HA, Ghafghazi S, Fergusson DA, Kostis WJ, Noveck H, Kim S, Tessalee M, Ducrocq G, Gabriel Melo de Barros E Silva P, Triulzi DJ, Alsweiler C, Menegus MA, Neary JD, Uhl L, Strom JB, Fordyce CB, Ferrari E, Silvain J, Wood FO, Daneault B, Polonsky TS, Senaratne M, Puymirat E, Bouleti C, Lattuca B, White HD, Kelsey SF, Steg PG, Alexander JH; MINT Investigators. Restrictive or Liberal Transfusion Strategy in Myocardial Infarction and Anemia. N Engl J Med. 2023 Nov 11. doi: 10.1056/NEJMoa2307983. Epub ahead of print. 

Sobre o autor

Remo H. M. Furtado

Diretor de Pesquisa do BCRI, Coordenador da Pós-graduação em Pesquisa Clínica da Galen Academy e Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da USP