A redução no consumo de álcool e risco cardiovascular - MDHealth - Educação Médica Independente

A redução no consumo de álcool e risco cardiovascular

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 5 de abril de 2024

5 min de leitura

O quê? 

O estudo Reduced Alcohol Consumption and Major Adverse Cardiovascular Events Among Individuals With Previously High Alcohol Consumption foi uma coorte que avaliou a redução no consumo de álcool ao longo da vida e sua associação com o risco cardiovascular. 

 

Por quê? 

O consumo de álcool é um dos fatores comportamentais mais prevalentes na saúde pessoal e pública. Na cardiologia, a correlação entre o álcool e a doença cardiovascular é controversa e geralmente descrita como protetora quando associada ao consumo de quantidades pequenas a moderadas. A maioria dos estudos anteriores sobre a associação entre consumo de álcool e a doença cardiovascular (DCV) utilizou um único ponto no tempo para estimar a ingestão média de álcool e definiu os não etilistas como grupo controle. No entanto, os hábitos de consumo de um indivíduo nem sempre permanecem os mesmos ao longo do tempo. Portanto, a associação do consumo de álcool com a evolução para desfechos cardiovasculares deve ser investigada no contexto de mudança habitual e não de comportamento fixo. 

 

Como? 

Os pesquisadores analisaram dados de 21.011 adultos no banco de dados do Serviço Nacional de Seguro de Saúde da Coreia ( Korean National Health Insurance Service–Health Screening [NHIS-HEALS]). Os participantes foram submetidos a avaliações clínicas durante dois períodos consecutivos, 2005-2008 e 2009-2012, e preencheram questionários de autorrelato descrevendo o hábito, quantidade e frequência da ingesta de álcool. Beber pesado foi definido como a ingesta de mais de quatro drinques por dia (56 gramas) ou mais de 14 drinques por semana (196 gr) para homens e mais de três drinques diários (42 gr) ou mais de sete drinques por semana (98gr) para mulheres. As pessoas classificadas como etilistas pesados no início do estudo foram categorizadas em dois grupos de acordo com as mudanças no consumo de álcool após a segunda avaliação clínica: consumo excessivo e contínuo versus consumo reduzido, e foram analisadas quanto aos desfechos.  

O desfecho primário foi a ocorrência de MACE (major adverse cardiovascular events), o composto de infarto do miocárdio (IM) não fatal ou angina que requer revascularização, qualquer acidente vascular cerebral (AVC) acompanhado de hospitalização e morte por todas as causas com códigos CID-10 correspondentes até 31 de dezembro de 2019. A taxa bruta de incidência foi calculada como o número de eventos por 100.000 pessoas-ano. Os desfechos secundários foram a análise individual de cada componente do desfecho primário. O escore de propensão foi utilizado para ajustar para os fatores de confusão. 

 

Estrutura PECO

Population: pacientes etilistas pesados  

Exposição:     pacientes etilistas que reduziram o consumo de álcool 

Control: pacientes etilistas que mantiveram o consumo de álcool 

Outcome MACE  

 

E aí? 

Entre os 21.011 participantes incluídos devido ao consumo pesado de álcool no início do estudo (18.963 homens [90,3%], 2.048 mulheres [9,7%]; idade média [DP], 56,08 [6,16] anos), 14.220 (67,7%) foram classificados como etilistas pesados sustentados , enquanto 6.791 (32,2%) reduziram o consumo de álcool para um nível leve a moderado. As variáveis clínicas, incluindo pressão arterial sistólica, níveis de hemoglobina, glicemia, bem como o número de tabagistas e obesos, foram maiores no grupo de consumo excessivo e sustentado.  

Durante um acompanhamento de 162378 pessoas-ano, o grupo de consumo excessivo e contínuo de álcool apresentou uma incidência significativamente maior de MACE do que o grupo que reduziu o consumo de álcool (817 vs 675 por 100.000 pessoas-ano). A redução do consumo de álcool foi associada a um risco 23% menor de MACEs do que o consumo excessivo e sustentado (propensity score matching hazard ratio [PSM HR] 0,77; intervalo de confiança [IC] 95% 0,67 a 0,82). A curva de Kaplan-Meier da incidência cumulativa de MACE começou a divergir após 3 anos da redução do consumo de álcool e a diferença aumentou gradualmente ao longo do tempo. 

As análises secundárias sugeriram a redução no consumo de álcool se associou a reduções significativas nos riscos de doença arterial coronariana (PSM HR, 0,71), angina (PSM HR, 0,70), AVC (PSM HR, 0,72), AIT (PSM HR, 0,66) e morte por todas as causas (PSM HR, 0,79).

 

E agora? 

A associação potencial entre o consumo leve a moderado de álcool e a redução do risco cardiovascular é amplamente discutida e difundida no meio médico e leigo; no entanto, uma associação causal que justifique tal achado permanece obscura. Vários mecanismos biológicos plausíveis foram propostos para explicar este fenômeno. O consumo leve a moderado de álcool orquestra vários processos biológicos que poderiam mitigar o risco cardiovascular, incluindo possível redução da agregação plaquetária, melhora da disfunção endotelial, redução da inflamação vascular, entre outros. Em contraste, o consumo excessivo de álcool está associado ao aumento do risco cardiovascular, com piora do perfil metabólico e de fatores de risco como hipertensão arterial sistêmica, obesidade e apneia do sono.  

Por isso, o entendimento sobre a redução do consumo de álcool como uma forma de mitigar esses riscos associados ao consumo excessivo de álcool é de grande importância para a prática clínica. O estudo reforça a dificuldade na realização de ações de mudança de estilo de vida (MEV) ao demonstrar um consumo de álcool excessivo e sustentado em quase 70% da população avaliada ao longo do tempo, dentro de um sistema organizado de assistência à saúde.  

A redução do consumo de álcool em indivíduos que bebiam muito de forma sustentada foi associada a uma menor incidência de angina e AVC isquêmico. A compreensão desses riscos específicos fornece aos médicos assistentes mais argumentos para uma orientação personalizada para reduzir o consumo de álcool, especialmente naqueles pacientes mais desafiadores em relação à questão da cessação do etilismo.  

O presente estudo apresenta limitações esperadas tais como: viés de informação devido à avaliação da ingestão de álcool por meio de questionários auto-referidos; e a impossibilidade de detecção de alterações comportamentais adicionais relacionadas com o álcool antes do primeiro período de exame de saúde e após o segundo período de exame de saúde. Porém, por abordar uma questão desafiadora de ser avaliada por meio de ensaio clínico randomizado – os benefícios cardiovasculares da redução do consumo de álcool – tem uma importância imprescindível para a prática da medicina individualizada e personalizada baseada em comportamento humano. 

Referência

  1. Kang DO, Lee D, Roh S, et al. Reduced Alcohol Consumption and Major Adverse Cardiovascular Events Among Individuals With Previously High Alcohol Consumption. JAMA Netw Open. 2024;7(3):e244013. doi:10.1001/jamanetworkopen.2024.4013 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia