Exercício de resistência (endurance) ao longo da vida e sua relação com aterosclerose coronariana: estudo Master@Heart - MDHealth - Educação Médica Independente

Exercício de resistência (endurance) ao longo da vida e sua relação com aterosclerose coronariana: estudo Master@Heart

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 14 de março de 2024

6 min de leitura

O quê? 

O estudo Lifelong endurance exercise and its relation with coronary atherosclerosis foi um estudo transversal que comparou a prevalência de placas coronárias calcificadas, mistas e não calcificadas pela tomografia computadorizada entre atletas de resistência de início tardio, atletas de resistência ao longo da vida e controles, na ausência de fatores de risco estabelecidos para doença arterial coronariana. 

 

Por quê? 

A relação do exercício físico com a melhora da pressão arterial e dos níveis lipídicos, bem como da aptidão cardiorrespiratória e da expectativa de vida, é bem estabelecida. Historicamente, a literatura destacava que a participação regular em esportes de resistência poderia estar associada à proteção contra doenças cardíacas isquêmicas. No entanto, estudos mais recentes sugeriam um aumento na prevalência de doença coronariana ateromatosa (DAC) e placas ateroscleróticas complexas (mistas e ricas em lipídios) entre atletas de endurance altamente treinados em comparação com a população não atleta e saudável. Porém, os estudos citados apresentavam viés de seleção na análise de fatores de risco para DAC, o que impedia sua adequada interpretação. Dessa forma, o contraditório aumento da aterosclerose coronariana entre atletas de endurance que treinaram ao longo da vida e sua possível evolução clínica com menos eventos cardiovasculares precisavam ser esclarecidos.  O presente estudo, portanto, avaliou se a prática de exercício de resistência ao longo da vida estaria associada a uma menor prevalência de placas não calcificadas do que os não atletas ou atletas tardios de endurance. 

 

Como? 

Os critérios de inclusão para todos os participantes foram: o sexo masculino e a idade entre 45 e 70 anos, sendo não atletas saudáveis ou atletas de endurance de início tardio (treinos iniciados com >30 anos) ou atletas de endurance de longa data (treinos iniciados com < 30 anos). Os participantes foram selecionados por meio de um questionário eletrônico.  Os atletas foram definidos da seguinte forma: envolvimento em ciclismo ≥8 h ou corrida ≥ 6 h por semana, ou triatlo (combinação de natação, ciclismo e corrida) ≥ 8 h por semana durante pelo menos 6 meses antes do início do estudo. Os não atletas praticavam ≤ 3 h por semana de atividade física, sem exposição prévia a exercício regular de resistência. Todos participantes foram estratificados em grupos por idade e, nos grupos de endurance, também pela idade com a qual iniciaram o exercício. 

 

Foram excluídos os participantes com antecedentes médicos de doença cardiovascular, ou fatores de risco estabelecidos para a doença arterial coronariana (DAC): diabetes mellitus [DM], hipercolesterolemia, hipertensão arterial sistêmica [HAS], histórico de tabagismo, índice de massa corporal (IMC) >27,2 kg/m²; e se houvesse alergia conhecida a contraste iodados. 

 

Os participantes foram selecionados de forma aleatória após responderem o questionário online e foram avaliados por meio de bioimpedância, teste cardiopulmonar e angiotomografia computadorizada de coronárias (ATCC). O desfecho primário foi a prevalência de placas coronárias (calcificadas, mistas e não calcificadas) na ATCC, avaliadas transversalmente após a seleção do participante. 

  

Estrutura PECO 

Population: Atletas de endurance (resistência) 

Exposition:  Exercícios iniciados com menos de 30 anos de idade 

Control: Atletas de resistência de início tardio (> 30 anos de idade) e não atletas saudáveis   

Outcome prevalência e tipo de placas coronárias (calcificadas, placas mistas e não calcificadas)  

 

E aí? 

Dos 1.152 candidatos elegíveis, foram incluídos 558 participantes compreendendo 191 atletas de longa data, 191 atletas de início tardio e 176 controles não-atletas. A média de idade dos participantes foi de 56 ± 6 anos e foi semelhante entre todos os grupos. Dentre os 3 grupos, os controles tinham um IMC mais elevado do que os atletas ao longo da vida e de início tardio (24,0 vs. 23,2 vs. 23,5 kg/m², p<0,001, respectivamente), bem como maior percentual de gordura corporal maior do que os atletas de longa data e de início tardio (19,4% vs. 13,9% vs. 15%, p<0,00, respectivamente). A pressão arterial sistólica, a pressão arterial diastólica, o colesterol total, o colesterol LDL e a HbA1c foram semelhantes em todos os grupos. Nos grupos de atletas de resistência, não houve diferença no pico de VO2 (VO2peak 48 mL/min/kg [43–53] vs. 46 mL/min/kg [41–51]) e nas horas semanais de exercícios (11 h 1[0–14] vs. 10 h [8–12], entre os atletas de longa data e início tardio, respectivamente. Nesses grupos, o esporte mais prevalente foi o ciclismo. Por fim, 23% dos pacientes no grupo controle não se exercitavam.   

 

Na ATCC, não houve diferença no número médio de placas, quando comparados os grupos de atletas ao longo da vida com o início tardio e o controle (2 [0–5] vs. 1 [0–3] vs. 0 [0–4]), assim como nas pontuações médias da calcificação das artérias coronárias (CAC) [8,5 [0–90,9] vs. 1,3 [0–54] vs. 0 [0–41,6]). Porém, ser atleta de endurance ao longo da vida foi associado a ter ≥1 placa coronariana (odds ratio [OR] 1,86, intervalo de confiança [IC] de 95% 1,17–2,94), ≥ 1 placa proximal (OR 1,96, IC 95% 1,24–3,11), ≥ 1 placa calcificada (OR 1,58, IC 95% 1,01–2,49), ≥ 1 placa proximal calcificada (OR 2,07, IC 95% 1,28–3,35), ≥ 1 placa não calcificada (OR 1,95, IC 95% 1,12–3,40), ≥ 1 placa proximal não calcificada (OR 2,80, IC 95% 1,39–5,65) e ≥1 placa mista (OR 1,78, IC 95% 1,06–2,99) em comparação com o grupo controle de pessoas saudáveis não atletas. Quando comparados atletas com menor exposição a exercícios de endurance e o grupo controle de não atletas saudáveis, somente a presença de ≥ 1 placa proximal calcificada foi diferente entre os grupos ( OR 1,83, IC95% 1,13–2,97). 

 

E agora? 

O paradoxo entre a prática de exercícios físicos de alta resistência e o maior risco de lesão coronariana (previamente descrita como “benigna”) tem sido alvo de questionamentos recorrentes ao longo da última década. O Master@Heart foi o estudo observacional que, pela primeira vez, ajustou o desenho do estudo e a análise estatística para a redução de possíveis viéses de seleção e da influência de fatores de risco clássicos para DAC na avaliação da relação “dose-resposta” por tempo de exposição entre a prática de exercício de resistência e a aterosclerose coronariana. Para tanto, a amostra de participantes foi selecionada aleatoriamente dentre os inscritos no questionário de triagem e, ainda, os grupos avaliados foram estratificados não somente pelo tempo de exposição ao exercício, mas também por idade. 

 

De maneira interessante, os autores observaram que a carga de treinamento e a aptidão cardiorrespiratória de participantes atletas e não-atletas foi maior do que a de outros estudos semelhantes. A relação dose-resposta entre treinamento de resistência e aterosclerose coronariana parece ser em forma de “J reverso”. Em consonância com estudos mais atuais (incluindo maratonistas, por exemplo), os autores observaram que os atletas de meia-idade, expostos ao longo da vida a exercícios de alta resistência, tinham mais placas coronarianas, incluindo mais placas não calcificadas nos segmentos proximais, do que aqueles com menor tempo de exposição ao exercício e do que indivíduos saudáveis não considerados atletas. Tais achados devem ser interpretados com cuidado, uma vez que, historicamente, indivíduos com alta aptidão cardiorrespiratória apresentam menor risco de eventos cardiovasculares.  

 

Algumas explicações para este aparente paradoxo foram pontuadas: o estudo observou que as placas vulneráveis, que apresentam o maior risco de eventos, eram raras e que, embora tenha sido demonstrado um aumento da carga de placa em atletas de endurance de longa duração, isto não se estendeu além de um SSS >10 ou SIS >6, o que significa que a carga global de placa permanece baixa em atletas. Por último, sabe-se que atletas de resistência possuem artérias coronárias maiores e maior potencial vasodilatador, o que significa que a proporção placa-vaso em atletas poderia ser menor e, portanto, levar a estenose menos significativa. 

 

Uma importante limitação do estudo está relacionada à sua validade externa, uma vez que todos os participantes eram homens brancos, além do potencial viés de informação quanto aos fatores de risco cardiovasculares (coletados em questionário).  

 

Em conclusão, o Master@Heart observou que a participação prolongada ao longo da vida em esportes de resistência, aliada a um estilo de vida saudável, não foi associada a uma composição mais favorável da placa coronária. Porém, é necessária uma investigação longitudinal para conciliar essas descobertas com o risco de eventos cardiovasculares na prática dos exercícios de resistência. 

Referência

  1. De Bosscher R, Dausin C, Claus P, Bogaert J, Dymarkowski S, Goetschalckx K, et al. Lifelong Endurance Exercise and Its Relation With Coronary Atherosclerosis. Eur Heart J (2023) 44(26):2388–99. 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia