Anticoagulação em pacientes com arritmias atriais detectadas por dispositivos cardíacos implantáveis - MDHealth - Educação Médica Independente

Anticoagulação em pacientes com arritmias atriais detectadas por dispositivos cardíacos implantáveis

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 29 de agosto de 2023

5 min de leitura

O quê? 

O estudo NOAH-AFNET 6 (Non–Vitamin K Antagonist Oral Anticoagulants in Patients with Atrial High Rate Episodes) foi um ensaio clínico randomizado, duplo cego e duplo mascarado (double-dummy), testando o uso do anticoagulante oral direto edoxabana versus placebo em pacientes com episódios de arritmia atrial de alta frequência detectados por marcapassos implantáveis, desfibriladores ou gravadores de loop. 

 

Por quê?  

O uso dos anticoagulantes orais, sejam os antagonistas da vitamina K (AVK) ou os inibidores diretos dos fatores IIa ou Xa (DOACs, direct-acting oral anticoagulants), reduzem o risco de acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico em pacientes com fibrilação atrial (FA). Os Episódios de Alta Frequência Atrial (EAFA) são taquiarritmias atriais detectadas por monitoramento contínuo do ritmo e apresentam prevalência de até 30% em idosos, com aumento de risco de AVC em comparação com pacientes sem EAFA. No entanto, ainda não está claro se o uso da anticoagulação, na presença destas arritmias traria eficácia na prevenção de eventos tromboembólicos, bem como se seria seguro, o que foi testado no estudo NOAH-AF 6. 

 

Como? 

O estudo incluiu pacientes idosos com idade ≥ 65 anos, com EAFA detectados por dispositivos implantados (apresentando frequência atrial de pelo menos 170 bpm e duração ≥ 6 minutos). Adicionalmente, era necessário pelo menos um fator de risco para AVC como insuficiência cardíaca, hipertensão arterial sistêmica, diabetes mellitus, AVC ou ataque isquêmico transitório prévios, doença aterosclerótica prévia, ou idade ≥ 75 anos. Pacientes com histórico de FA documentado em eletrocardiograma (ECG), outras indicações para anticoagulação ou do uso de dupla antiagregação plaquetária foram excluídos.  

Os pacientes foram randomizados para edoxabana 60 mg via oral 1 vez/dia ou 30 mg via oral 1 vez/dia (se peso corpóreo ≤ 60kg, taxa de filtração glomerular de 15 a 50ml/min ou se estivessem em uso de fortes inibidores da glicoproteína-P) versus placebo. Foi usada a técnica de cegamento duplo mascarado, ou double-dummy, para garantir que os pacientes com indicação formal do uso do ácido acetilsalicílico por doença cardiovascular, randomizados para o placebo, pudessem recebê-lo de forma cega. 

O desfecho primário de eficácia foi a primeira ocorrência de um composto de morte cardiovascular, acidente vascular cerebral ou embolia sistêmica, avaliado em uma análise de tempo até o evento. O desfecho de segurança foi um composto de morte por qualquer causa ou sangramento grave, como definido pela Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia. Os principais desfechos secundários foram os componentes individuais do resultado primário de eficácia e de segurança e um composto de acidente vascular cerebral ou embolia sistêmica. De forma interessante, o estudo também avaliou função cognitiva, qualidade de vida, satisfação do paciente e status funcional.   

 

Estrutura PICOT 
Population:   Pacientes com eventos atriais de alta frequência detectados em dispositivos implantáveis 
Intervention   Edoxabana 60mg, via oral, 1 vez/dia (ou dose ajustada) 
Control:   Placebo    
Outcome   Eficácia: morte cardiovascular, AVC ou embólica sistêmica 

Segurança: morte por qualquer causa ou sangramento grave 

Time   21 meses (interrompido precocemente) 

 

E aí?   

Foram incluídos um total de 2536 pacientes (1270 no grupo edoxabana e 1266 no grupo placebo). A idade média era de 78 anos, e 37% dos pacientes eram do sexo feminino. A maioria dos pacientes (81,7%) teve os EAFA detectados via marcapasso implantável, com duração mediana de 2,8 horas e em 97,1% dos casos com mais de 200 batimentos/minuto. A mediana do CHA2DS2-VASc foi de 4, variando entre 3 e 5. Ainda, em torno de 10% dos pacientes incluídos no estudo já havia apresentado pelo menos 1 episódio de AVC ou AIT. 

O estudo foi interrompido precocemente após observação, em análise interina, de possível futilidade em eficácia, associada a um aumento do risco de sangramento. Ao término de 21 semanas, não houve diferença no desfecho composto de morte cardiovascular, AVC ou embolia sistêmica, sendo observado em torno de 3,2% de eventos no grupo edoxabana versus 4,0% no grupo placebo ( hazard ratio [HR] 0,81; IC [intervalo de confiança) 95% 0,60 a 1,08; P = 0,15). Os grupos edoxabana e placebo apresentaram uma taxa de AVC de 0,9% e 1,1%, respectivamente, sem diferença estatisticamente significativs. Porém, foi observado um aumento no desfecho composto de segurança (5,9% no grupo edoxabana versus 4,5% no grupo placebo, P=0,03), motivado pelo maior número de sangramentos graves (2,1% no grupo edoxabana versus 1,0% no grupo placebo; HR 2,10; IC 95% 1,30 a 3,38). Ambos os grupos relataram uma piora na qualidade de vida ao longo do estudo, porém sem diferença entre os trataments. Não foi observada diferença na função cognitiva e no status funcional dos pacientes ao longo do estudo. 

 

E agora? 

Os pacientes incluídos no estudo NOAH-AFNET representam uma população de alto risco para eventos tromboembólicos relacionados à episódios atriais de alta frequência, por se tratarem de pacientes idosos e com CHA2DS2-VASc alto. No entanto, a incidência observada de acidente vascular cerebral no estudo foi baixa, quando comparada a estudos epidemiológicos prévios, o que chamou a atenção da comunidade científica. Porém, fisiologicamente, é correto o entendimento de que, embora os pacientes com EAFA apresentem um risco mais elevado de AVC em comparação com a população em geral, o risco permanece inferior ao associado à FA (por apresentarem menor carga de arritmia).  

Importante salientar, no entanto, que esses pacientes não estão isentos do risco de evoluir para tais eventos e que devem ser acompanhados de maneira sistemática e regular quanto à carga dos EAFA e às alterações nas condições clínicas predisponentes, para a detecção precoce de FA clínica. Atualmente, as diretrizes de FA reforçam que não está claro se a EAFA e a FA subclínica devem ser tratadas da mesma forma que a FA clínica, e recomendam a realização de uma avaliação cardiovascular completa e individualizada para a melhor tomada de decisões, de acordo com as preferências informadas do paciente. 

Nesse sentido, embora este seja um ensaio neutro, fornece informações que mudam a prática, uma vez que muitos médicos têm tratado os pacientes com EAFA com anticoagulação. O resultado do estudo corrobora o fato de não haver indicação de anticoagulação para redução de eventos tromboembólicos em pacientes que nunca tiveram um episódio de FA e podem tornar apropriado a suspensão da terapêutica anticoagulante em doentes com EAFA. 

Porém é importante relembrar algumas limitações: a interrupção precoce com 184 eventos em um estudo evento-dirigido pode ter limitado o poder do estudo e por isso a falha em detectar possível (e provavelmente pequeno) benefício. Ainda, como já historicamente observado nos estudos com NOACs – “one size does NOT fit all!”. Diferentes anticoagulantes apresentaram respostas diferentes nos cenários da FA. Será prudente aguardarmos os breves resultados dos estudos com Apixabana ( ArTESIA – Apixaban for the Reduction of Thrombo-Embolism in Patients with Device-Detected Sub-Clinical Atrial Fibrillation) para que dados mais consistentes possam ser incorporados às diretrizes, apoiando as tomadas de decisão. 

Referência

  1. Kirchhof P, Toennis T, Goette A, Camm AJ, Diener HC, Becher N, Bertaglia E, Blomstrom Lundqvist C, Borlich M, Brandes A, Cabanelas N, Calvert M, Chlouverakis G, Dan GA, de Groot JR, Dichtl W, Kravchuk B, Lubiński A, Marijon E, Merkely B, Mont L, Ozga AK, Rajappan K, Sarkozy A, Scherr D, Sznajder R, Velchev V, Wichterle D, Sehner S, Simantirakis E, Lip GYH, Vardas P, Schotten U, Zapf A; NOAH-AFNET 6 Investigators. Anticoagulation with Edoxaban in Patients with Atrial High-Rate Episodes. N Engl J Med. 2023 Aug 25. doi: 10.1056/NEJMoa2303062. Epub ahead of print.  

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia