Avaliação de longo prazo da Terapia de Ressincronização Cardíaca associada ao desfibrilador em pacientes com insuficiência cardíaca: RAFT Long-Term - MDHealth - Educação Médica Independente

Avaliação de longo prazo da Terapia de Ressincronização Cardíaca associada ao desfibrilador em pacientes com insuficiência cardíaca: RAFT Long-Term

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 3 de abril de 2024

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O quê? 

O estudo Long-Term Outcomes of Resynchronization– Defibrillation for Heart Failure – RAFT Long-Term foi um ensaio clínico randomizado que avaliou os efeitos a longo prazo da Terapia de Ressincronização cardíaca associada ao desfibrilador (TRC-D) comparado à terapia isolada com o Cardioversor Desfibrilador implantável (CDI) na mortalidade de longo prazo em pacientes com insuficiência cardíaca do estudo original RAFT. 

 

Por quê? 

A terapia de ressincronização cardíaca associada ao desfibrilador (TRC) demonstrou reduzir a mortalidade e internação por insuficiência cardíaca (IC) em pacientes com insuficiência cardíaca sintomática, fração de ejeção reduzida e complexo QRS largo, já em uso de terapia medicamentosa otimizada, sendo estabelecido como tratamento padrão em pacientes específicos (com fração de ejeção do ventrículo esquerdo [FEVE] ≤35%, em ritmo sinusal e bloqueio de ramo esquerdo com QRS pelo menos ≥ 120ms.)  Porém, por se tratar de uma intervenção vitalícia para esses pacientes, a tomada de decisões clínicas também deveria passar pela avaliação de estudos sobre os resultados a longo prazo sobre as terapias implantáveis, o que foi abordado na presente publicação. 

Como? 

O estudo original The Resynchronization–Defibrillation for Ambulatory Heart Failure Trial (RAFT) foi um estudo randomizado, multicentrico, duplo cego e controlado que avaliou 1798 pacientes com insuficiência cardíaca durante 40 ± 20 meses e demonstrou redução do desfecho primário composto de mortalidade por todas as causas e internações por IC (hazard ratio, 0,75; intervalo de confiança [IC] 95% 0,64 a 0,87; P<0.001) com o uso do CRT-D quando comparado ao CDI isoladamente. 

 

Pacientes com insuficiência cardíaca classe II ou III (inicialmente) de New York Heart Association (NYHA), FEVE ≤ 30% e QRS com duração igual ou superior a 120 ms (ou>200ms em uso de marcapasso)  foram randomizados, numa proporção de 1:1, para receber um CDI ou um TRC com CDI. Ao longo do recrutamento, os pacientes em NYHA III foram considerados inelegíveis após publicações demonstrando redução de mortalidade pelo uso de dispositivos implantáveis nesse subgrupo. Os pacientes e os investigadores clínicos foram cegos quanto ao tipo de dispositivo implantável, o que era conhecido apenas pela equipe de arritmia.  

 

O primeiro paciente foi incluído no estudo original RAFT em janeiro de 2003 e o estudo de longo prazo seguiu os pacientes até a data de 31 de dezembro de 2021. O desfecho primário foi mortalidade por todas as causas. O desfecho secundário foi um composto de morte por todas as causas, transplante cardíaco e necessidade de implantes de dispositivos de assistência ventricular.  

 

Estrutura PICOT  

Population: IC sintomática com FEVE ≤30% e QRS>120ms 

Intervention:  TRC-D (terapia de ressincronização cardíaca com desfibrilador) 

Control: CDI 

Outcome morte por todas as causas 

Time até 13 anos 

 

E aí? 

Um total de 1798 pacientes em 34 centros foram incluídos estudo original,  porém apenas oito centros participaram no seguimento a longo prazo do RAFT com 1050 pacientes. Foram avaliados 530 pacientes no braço CDI e 520 no braço TRC-D, em sua maioria homens (84%), com idade média de 66 anos e em torno de 68% tinham IC de causa isquêmica com FEVE média de 22%. 

A duração mediana do seguimento do total de 1050 doentes foi de 7,7 anos (intervalo interquartil [IQR] 3,9 a 12,8), e a duração mediana do seguimento dos que sobreviveram foi de 13,9 anos (IQR 12,8 a 15,7).  O desfecho primário de morte por todas as causas ocorreu em 405 dos 530 pacientes (76,4%) do grupo CDI e em 370 dos 520 pacientes (71,2%) designados para o grupo TRC-D. O tempo até a morte foi mais longo no grupo TRC-D do que para aqueles designados para receber um CDI (fator de aceleração, 0,80; IC 95%, 0,69 a 0,92; P = 0,002). O desfecho secundário ocorreu em 412 pacientes (77,7%) no grupo CDI e em 392 (75,4%) no grupo TRC-D, sendo o tempo para ocorrência do evento também maior no grupo TRC-D (fator de aceleração, 0,85; IC 95%, 0,74 a 0,98). A análise de subgrupo sugere consistência dos resultados em pacientes em NYHA II e não naqueles em NYHA III. 

 

E agora? 

O estudo Resynchronization in Ambulatory Heart Failure Trial (RAFT) originalmente publicado em 2010 e já incorporado pelas diretrizes internacionais demonstrou benefício clínico em mortalidade e redução de sintomas da terapia de ressincronização cardíaca associada ao CDI em pacientes sintomáticos com insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida. Porém, frente às importantes atualizações das terapias medicamentosas ocorridas na última década com importante impacto em redução mortalidade na insuficiência cardíaca, o entendimento do benefício a longo prazo dos dispositivos implantáveis se tornou imprescindível. Se levarmos em conta o NNT (number needed to treat, número necessário para tratar), é preciso se implantar cerca de 19 dispositivos de TRC-D a fim de evitar uma morte em 13 anos.  

O presente estudo demonstrou que o benefício da TRC-D em relação ao CDI parece ser sustentado no seguimento a longo prazo, embora os dados estivessem disponíveis para apenas 58,4% da população total. Porém, apesar do seguimento até o final de 2021, o estudo não avalia ou descreve o uso das novas terapias como os inibidores da neprilisina ou do cotransportador de sódio-glicose-2, portanto não deixando claro se os pacientes que permaneceram o seguimento realmente estariam em terapia medicamentosa otimizada.  

Por outro lado, a consistência dos dados demonstrada em pacientes predominantemente em classe funcional mais baixa, diferentemente dos estudos anteriores, é de grande relevância para a mudança da prática clínica atual. Pacientes em classe funcional II, ambulatorialmente, mesmo apresentando os demais critérios de indicação de TRC, são muitas vezes manejados de forma mais conservadora em relação a dispositivos implantáveis. Apesar de não representativo (por terem sido excluídos a partir de 2006) e de se tratar de análise de subgrupo, os pacientes em classe III pareceram não ter o mesmo benefício do que aqueles menos graves, em longo prazo.  

Outro dado importante é que, apesar dessa predominância de pacientes menos sintomáticos desde o início do estudo, quase 80% morreram em quase 15 anos de seguimento, conforme demonstrado nas curvas de Kaplan-Meier. Como a TRC classicamente gera melhorias importantes na capacidade funcional, na qualidade de vida e na sobrevivência, especialmente com os constantes avanços tecnológicos nos dispositivos, seu uso precoce no tratamento da IC deve ser considerado e individualmente discutido com o paciente.  

Referência

  1. Sapp JL, Sivakumaran S, Redpath CJ, et al. Long-term outcomes of resynchronization-defibrillation for heart failure. N Engl J Med 2024; 390:212-220 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia