Qual é o tempo ideal de anticoagulação em pacientes com câncer e trombose venosa profunda distal - MDHealth - Educação Médica Independente

Qual é o tempo ideal de anticoagulação em pacientes com câncer e trombose venosa profunda distal

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 18 de setembro de 2023

6 min de leitura

O quê?  

O estudo ONCO-DVT (Edoxaban for 12 Months Versus 3 Months in Cancer Patients With Isolated Distal Deep Vein Thrombosis) foi um ensaio clínico randomizado, aberto (open-label) e multicêntrico, testando o uso do novo anticoagulante oral edoxabana por 3 meses versus 12 meses em pacientes oncológicos com diagnóstico de trombose venosa profunda (TVP) distal.  

 

Por quê?  

O tromboembolismo venoso (TEV), em especial as TVP distais que contribuem para 30% dos casos, apresenta um risco de recorrência a longo prazo já bem reconhecido e que merece prevenção por meio de anticoagulação. Porém, os pacientes com diagnóstico de câncer, que por si só já é um forte fator de risco para TEV, têm sido habitualmente excluídos dos estudos que avaliaram estratégias de anticoagulação a longo prazo no cenário da TVP. Importante ressaltar que, nessa população, em torno de 4,6% dos pacientes apresentam o diagnóstico de TVP distal. Portanto, atualmente existe uma enorme incerteza quanto às estratégias de manejo ideais nesse contexto, incluindo a eficácia e segurança da duração prolongada da terapia anticoagulante nos subtipos de TVP distal em pacientes oncológicos, o que foi testado no estudo ONCO-DVT. 

 

Como?  

O estudo incluiu pacientes com câncer ativo e diagnóstico recente de TVPem membros inferiores. A TVP deveria ser confirmada por ultrassonografia venosa (US) com doppler demonstrando presença de trombos ou falta de fluxo sanguíneo com compressão distal. O diagnóstico de câncer ativo foi definido como o câncer que satisfaz um dos seguintes critérios: paciente recém-diagnosticado com câncer e/ou que recebeu tratamento (cirurgia, quimioterapia ou radioterapia, etc.) até 6 meses antes da randomização; pacientes atualmente em tratamento para neoplasias; pacientes com recorrência do câncer, invasão local ou metástases distais OU pacientes com neoplasia hematopoiética maligna que não atingiram a remissão completa. Os principais critérios de exclusão foram pacientes em terapia anticoagulante no momento do diagnóstico, contraindicação para edoxabana,  diagnóstico de embolia pulmonar (EP) e pacientes que com prognóstico de vida de 3 meses ou menos, a critério dos médicos assistentes. 

Os pacientes foram randomizados para edoxabana 60 mg via oral 1 vez/dia (ou 30 mg via oral 1 vez/dia se peso corpóreo ≤ 60kg, taxa de filtração glomerular de 15 a 50ml/min ou se estivessem em uso de fortes inibidores da glicoproteína-P) por 12 meses versus 3 meses, na proporção de 1:1 por meio de randomização adaptativa (dessa forma, equilibrando a atribuição ao tratamento em cada centro de pesquisa). O estudo foi conduzido de forma aberta (open-label), porém com adjudicação cega dos desfechos. O protocolo previa ainda realização de US e testes laboratoriais aos 3 e 12 meses para os dois grupos. Importante ressaltar que, apesar de multicêntrico, todos os 60 centros eram localizados no Japão.  

O desfecho composto primário de eficácia foi a recorrência de qualquer TEV, porém de forma sintomática (i.e., sintomas novos ou de agravamento recente de EP ou TVP e presença de novos trombos ou trombos que pioraram ao longo do tempo em relação a imagem mais recente); ou o evento de morte secundária ao diagnóstico de TEV. O desfecho secundário de segurança foi sangramento maior em 12 meses, como definido pela Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (em inglês, ISTH).  

Estrutura PICOT 
Population:   Pacientes oncológicos recém diagnosticados com TVP       
Intervention   Edoxabana 60mg, via oral, 1 vez/dia (ou dose ajustada) por 12 meses 
Control:   Edoxabana 60mg, via oral, 1 vez/dia (ou dose ajustada) por 3 meses 
Outcome   Eficácia: recorrência de TVP ou EP ou morte por TEV em 12 meses 

Segurança: sangramento grave em 12 meses 

Time   12 meses    

 

E aí?   

No total de 601 pacientes completaram o estudo (206 no grupo edoxabana por 12 meses e 305 no grupo edoxabana por 3 meses), e foram avaliados seguindo o princípio da análise por intenção de tratar. A idade média era de 70 anos e 72% dos pacientes eram do sexo feminino. Os tipos mais comuns neoplasia foram as ginecológicas (28%), seguidas de neoplasia pulmonar (11%) e neoplasia de cólon (10%).  

Houve redução significativa no desfecho primário de TEV recorrente e sintomática ou morte relacionada a TEV. O evento trombótico ocorreu em 3 dos 296 pacientes (1,0%) no grupo edoxabana por 12 meses e em 22 dos 305 pacientes (7,2%) no grupo de tratamento por 3 meses (odds ratio [OR], 0,13; intervalo de confiança [IC] 95%, 0,03 a 0,44). Apesar da alta taxa de descontinuação da edoxabana, as análises por-protocolo foram consistentes com esses resultados. Não houve mortes relacionadas a TEV em qualquer grupo. Importante ressaltar que esse benefício não foi acompanhado de aumento estatisticamente significativo de sangramento no estudo (7,2% grupo 3 meses vs 9,5% grupo 12 meses; OR, 1.34; 95% IC95%, 0,75 a 2,41). Como é frequente em estudos de anticoagulantes, os sangramentos ocorreram principalmente no trato gastrointestinal (48%). As mortes por todas as causas (desfecho secundário) ocorreram em 22% dos pacientes no grupo de edoxabana de 12 meses e em 25% no grupo de edoxabana de 3 meses (OR, 0,85; IC 95%, 0,58 a 1,24).  

 

E agora?  

O estudo ONCO-DVT foi o primeiro estudo que demonstrou benefício do uso de uma estratégia prolongada de anticoagulação (até 12 meses) em pacientes com câncer ativo e diagnóstico recente de trombose venosa profunda em relação ao resultado composto de evento de TEV recorrente e sintomática ou morte relacionada a TEV.  

Seus resultados são de grande importância, uma vez que a literatura é escassa em relação a dois pontos essenciais: a avaliação do risco e da gravidade de recorrência em eventos trombóticos distais como a TVP; e a análise da anticoagulação no contexto ambulatorial de TEV em pacientes oncológicos.  Esse segundo cenário é motivado pela grande preocupação quanto ao risco de sangramento espontâneo dessa população, além da possível necessidade de procedimentos intervencionistas, situações nas quais a anticoagulação possivelmente traria mais riscos do que benefícios.  

Porém, alguns pontos devem ser cautelosamente observados no desenho do estudo:  

  1. A maioria dos pacientes (67% no grupo 12 meses e 73% no grupo de 3 meses de tratamento) tinha baixo peso e teve sua dose reduzida para 30 mg/dia, o que pode explicar taxas de sangramento semelhantes entre os dois grupos, apesar do uso de anticoagulação de maior duração. Resta a dúvida se esse resultado seria generalizável para uma população de maior peso.  
  2. O desenho do estudo definia a realização de US doppler venoso em pacientes assintomáticos, o que não é uma rotina (e talvez nem seja custo-efetivo) para pacientes com câncer. Como apenas 20% dos pacientes eram sintomáticos com TVP distal, isso também levanta a questão se a vigilância de rotina nesses pacientes pode ser benéfica. 
  3. A adesão ao tratamento com edoxabana foi relativamente baixa de acordo com o protocolo do estudo, visto que alguns dos pacientes no grupo de edoxabana por 12 meses descontinuaram a medicação prematuramente devido a eventos hemorrágicos ou progressão do câncer. Esta questão pode ter subestimado o risco de hemorragia grave no grupo de edoxabana de 12 meses pela análise por intenção de tratar. 

As diretrizes atuais recomendam fracamente que pacientes com TVP distal isolada e câncer ativo devem receber terapia anticoagulante e a estratégia de anticoagulação deve ser a mesma dos pacientes com TEV proximal, o que significa que uma duração prolongada (geralmente de 6 meses) pode ser considerada. Porém essas recomendações possuem baixo nível de evidência e não foram baseadas em estudos específicos na população oncológica.  

É esperado que o ONCO-DVT traga mudança de recomendações, que deverão ainda ser individualizadas conforme o risco de sangramento do paciente. O estudo reforça as mensagens de que os eventos trombóticos em pacientes oncológicos são sub-diagnosticados, subestimados em gravidade e, por isso, devem ser buscados ativamente. Corrobora também que atualmente o perfil de segurança dos anticoagulantes orais diretos, como a edoxabana, permite que seu uso seja seguro também em pacientes em tratamento do câncer.  

Referência

  1. Yamashita Y, Morimoto T, Muraoka N, Oyakawa T, Umetsu M, Akamatsu D, Nishimoto Y, Sato Y, Takada T, Jujo K, Minami Y, Ogihara Y, Dohi K, Fujita M, Nishikawa T, Ikeda N, Hashimoto G, Otsui K, Mori K, Sueta D, Tsubata Y, Shoji M, Shikama A, Hosoi Y, Tanabe Y, Chatani R, Tsukahara K, Nakanishi N, Kim K, Ikeda S, Mo M, Yoshikawa Y, Kimura T; ONCO DVT Study Investigators. Edoxaban for 12 Months Versus 3 Months in Cancer Patients With Isolated Distal Deep Vein Thrombosis (ONCO DVT study): An Open-label, Multicenter, Randomized Clinical Trial. Circulation. 2023 Aug 28. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.123.066360. Epub ahead of print. 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia