Anticoagulação em pacientes com fibrilação atrial e angioplastia ou síndrome coronária aguda - MDHealth - Educação Médica Independente

Anticoagulação em pacientes com fibrilação atrial e angioplastia ou síndrome coronária aguda

Escrito por: Remo H. M. Furtado em 28 de fevereiro de 2024

6 min de leitura

O quê?  

O estudo AUGUSTUS () foi um estudo multicêntrico, randomizado, fatorial 2 x 2, incluindo pacientes com fibrilação atrial (FA) e indicação de dupla antiagregação plaquetária (DAP) devido a uma síndrome coronária aguda (SCA) ou intervenção coronária percutânea (ICP) recente. Os pacientes foram randomizados para apixabana versus antagonista de vitamina K (AVK), assim como para aspirina 81 mg/dia versus placebo.  

 

Por quê?  

Em pacientes com FA não-valvar, os anticoagulantes orais diretos (DOACsdirect acting oral anticoagulants) se associaram a um menor risco de eventos tromboembólicos e menor mortalidade em comparação aos AVK. Também se associaram com menor ocorrência de hemorragia intracraniano (HIC). Entretanto, os estudos pivotais com os DOAC não incluíram a população de pacientes que tinham FA e indicação de DAP (além da anticoagulação) em virtude de ICP ou SCA. Neste subgrupo, era importante se determinar: 1) se os DOACs de fato seriam mais seguros do que a varafarina; e 2) se a terapia dupla (omitindo-se aspirina) seria mais segura do que a terapia tripla (isto é, DAP mais o anticoagulante).  

 

Como?  

O estudo incluiu pacientes com FA documentada (permanente, paroxística ou persistente) além de ICP com necessidade de stent e/ou SCA recente. Os pacientes poderiam ser incluídos não mais do que 14 dias após o evento-índice (ou seja, a ICP ou a SCA). Os pacientes eram randomizados duas vezes (daí o desenho 2×2 fatorial). Uma randomização era para apixabana (dose de 5 mg duas vezes ao dia, ou 2,5 mg duas vezes ao dia em indivíduos com pelo menos dois dos seguintes: peso ≤ 60 kg, creatinina ≥ 1,5 mg/dL ou idade ≥ 80 anos) versus AVK (dose ajustada pelo INR). A segunda randomização era para terapia tripla (isto é, anticoagulante + aspirina 81 mg/dia + antagonista de ADP) versus terapia dupla (anticoagulante + placebo + antagonista de ADP). A escolha do antagonista de ADP era a critério do médico assistente.  

O desfecho primário do estudo foi a ocorrência de sangramento maior ou sangramento clinicamente relevante não maior pelos critérios da ISTH (International Society of Thrombosis and Hemostasis). Os desfechos secundários foram o composto de mortalidade ou hospitalização, e o composto de morte ou eventos isquêmicos (AVC, infarto, trombose de stent ou revascularização de urgência). Todos os desfechos foram analisados de maneira cega por um comitê de eventos clínicos independente.  

 

Estrutura PICOT – fator 1  
Population:  Pacientes com FA + ICP e/ou SCA  
Intervention  Apixabana    
Control:  AVK   
Outcome  Sangramento pela ISTH   
Time  6 meses   

 

Estrutura PICOT – fator 2  
Population:  Pacientes com FA + ICP e/ou SCA  
Intervention  Terapia dupla (Placebo + Anti-ADP + ACO) 
Control:  Terapia tripla (AAS + Anti-ADP + ACO) 
Outcome  Sangramento pela ISTH   
Time  6 meses   

 

E aí?   

O estudo incluiu 4614 pacientes. A idade média foi de 70,7 anos, 29% eram do sexo feminino e 91,8% da raça branca.  O escore CHADS-VASc médio foi de 3,9, e o escore HAS-BLED médio foi de 2,9.  A antagonista de ADP mais utilizado foi o clopidogrel (92,6% dos casos), e a média de tempo entre o evento-índice e a inclusão foi de 6,6 dias. A mediana de tempo na faixa terapêutica (TTR – time in therapeutic range) do INR no grupo de AVK foi de 59%.  

Após um seguimento de 6 meses, 241 (10,5%) dos pacientes experimentaram o desfecho primário no grupo apixabana versus 332 (14.7%) no grupo AVK (hazard ratio [HR] 0,69; intervalo de confiança [IC] 95% 0,58-0,81; P < 0,001 para não-inferioridade e P< 0,001 para superioridade). Na comparação entre aspirina e placebo, o desfecho primário ocorreu em 367 (16,1%) dos pacientes no grupo aspirina versus 204 (9,0%) no grupo placebo (HR 1,89; IC 95% 1,59-2,24; P < 0,001). No desfecho primário, não houve interação entre os dois fatores de randomização (apixabana versus AVK e aspirina versus placebo) (P para interação = 0,64). A apixabana também resultou em menor ocorrência, em relação ao AVK, dos desfechos secundários de sangramento maior ISTH, assim como no sangramento moderado ou grave pelo critério GUSTO. A aspirina também mostrou aumento de sangramento em relação ao placebo pelos mesmos critérios.    

A apixabana, em comparação ao AVK, resultou em menor ocorrência de morte ou hospitalização (23,5% versus 27,4%, respectivamente; HR 0,83; IC 95% 0,74-0,93; P = 0,002), enquanto não houve diferença entre os grupos na ocorrência de morte ou evento isquêmico (6,7% versus 7,1%; HR 0,93; IC 95% 0,75-1,16). Já na comparação entre aspirina e placebo, não houve diferença nem no desfecho morte ou hospitalização (26,2% versus 24,7%, respectivamente; HR 1,08; IC 95% 0,96-1,21) nem de morte ou evento isquêmico (6,5% versus 7,3%, respectivamente; HR 0,89; IC 95% 0,71-1,11). No desfecho secundário de morte ou hospitalização, também não houve interação entre os dois fatores de randomização (P para interação = 0,21). Não houve diferença estatisticamente significativa entre aspirina e placebo na ocorrência de AVC (HR 1,06; IC 95% 0,56-1,98), infarto (HR 0,81; IC 95% 0,59-1,12) ou trombose de stent (HR 0,52; IC 95% 0,25-1,08). O uso de apixabana se associou a uma menor ocorrência de AVC em relação ao AVK (HR 0,50; IC 95% 0,26-0,97).  

 

E agora?  

A anticoagulação plena é recomendada em pacientes com FA e fatores de risco para embolia. As diretrizes atuais recomendam uma estratégia preferencial de uso de DOAC versus AVK. Já os pacientes com SCA ou ICP devem receber DAP com aspirina + inibidor de ADP por pelo menos 6 meses a fim de prevenir eventos isquêmicos e trombose de stent. A decisão sobre o que fazer em pacientes com ambas as condições é desafiadora, já que a anticoagulação não consegue substituir o antagonista de ADP em pacientes com ICP, nem o antagonista de ADP consegue conferir a mesma proteção contra AVC que a anticoagulação. Entretanto, a combinação de três medicamentos pode expor o paciente a risco inaceitável de sangramento em comparação à terapia dupla.  

Neste sentido, o estudo AUGUSTUS traz duas informações bastante relevantes para a prática clínica. Em primeiro lugar, mostra que, nesta população específica de pacientes com FA e SCA e/ou ICP, o uso da apixabana resultou em menor ocorrência de sangramento importante e hospitalizações em relação ao AVK. Em segundo lugar, o uso de aspirina no regime terapêutico (isto, tripla terapia) também resultou em maior ocorrência de sangramento em relação à terapia dupla (omitindo-se a aspirina e mantendo-se somente anticoagulante + antagonista do ADP), sem resultar em menor incidência de eventos isquêmicos, como AVC, infarto ou trombose de stent. O achado de menor incidência de AVC no grupo apixabana deve ser interpretado com cautela, em virtude do pequeno número de eventos e por ser um componente de um desfecho secundário (embora seja um achado consistente com outros estudos semelhantes).  

No estudo AUGUSTUS, foi utilizado um desenho chamado fatorial 2×2, quando se desejar testar, ao mesmo tempo, dois tratamentos na mesma oportunidade. Com isso, o estudo pode avaliar duas hipóteses. O grande problema deste tipo de estudo ocorre quando existe interação entre os dois tratamentos, fazendo com que a análise isolada de cada fator (isto é, tripla versus dupla, independente do anticoagulante, e apixabana versus AVK, independente da presença de aspirina) não seja válida. Neste caso, isto não ocorreu, de modo que podemos analisar as duas hipóteses de maneira independente. O estudo teve a limitação de incluir pacientes com uma média de 6,6 dias do evento-índice, sugerindo que talvez ainda se deva manter a aspirina por um curto período peri-procedimento (talvez somente durante a hospitalização), e grande maioria dos pacientes incluídos serem da raça branca, limitando um pouco a validade externa do estudo. Por fim, embora a retirada da aspirina não tenha resultado em maior ocorrência de infarto nem de trombose de stent, é possível que o estudo não tenha tido poder suficiente para avaliar tais eventos. Talvez alguns grupos muito seletos de pacientes, com muito alto risco trombótico e baixo risco de sangramento, ainda possam se beneficiar de manter a aspirina por até 30 dias.  

Em conclusão, baseado nos achados do estudo AUGUSTUS, em pacientes com FA e ICP e/ou SCA, após um breve período em uso de aspirina (não mais do que 7 dias), o melhor regime antitrombótico parece ser a dupla terapia com um DOAC (no caso, a apixabana) mais um antagonista de ADP. Neste caso, vale a máxima bastante conhecida de que “um é pouco, dois é bom, três é demais”.    

Referência

  1. Lopes RD, Heizer G, Aronson R, Vora AN, Massaro T, Mehran R, Goodman SG, Windecker S, Darius H, Li J, Averkov O, Bahit MC, Berwanger O, Budaj A, Hijazi Z, Parkhomenko A, Sinnaeve P, Storey RF, Thiele H, Vinereanu D, Granger CB, Alexander JH; AUGUSTUS Investigators. Antithrombotic Therapy after Acute Coronary Syndrome or PCI in Atrial Fibrillation. N Engl J Med. 2019 Apr 18;380(16):1509-1524 

Sobre o autor

Remo H. M. Furtado

Diretor de Pesquisa do BCRI, Coordenador da Pós-graduação em Pesquisa Clínica da Galen Academy e Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da USP