Aspirina entérica versus aspirina convencional: tem diferença? - MDHealth - Educação Médica Independente

Aspirina entérica versus aspirina convencional: tem diferença?

Escrito por: Remo H. M. Furtado em 9 de outubro de 2023

5 min de leitura

O quê? 

Em uma análise post-hoc do estudo ADAPTABLE, um ensaio clínico randomizado testando aspirina 325 mg versus 81 mg em pacientes com doença cardiovascular (CV), os investigadores compararam o tipo de aspirina, isto é, a formulação entérica versus a convencional, em relação aos desfechos CV e de sangramento.  

 

Por quê? 

As formulações entéricas de aspirina permitem uma absorção da medicação no intestino, levando assim uma menor agressão à mucosa gástrica, com teoricamente menor risco de intolerância e sangramento gastrointestinais (GI). Por outro lado, alguns estudos mecanísticos têm sugerido um menor efeito da aspirina entérica na inibição da agregação plaquetária. Se tais diferenças podem resultar em redução da eficácia do medicamento quanto à proteção CV permanece incerto.  

 

Como? 

O estudo ADAPTABLE randomizou 15.076 pacientes com histórico de doença CV aterosclerótica e fatores de risco adicionais (diabetes, idade > 65 anos, doença multi-arterial ou disfunção renal) para duas doses de aspirina (uma vez ao dia): 325 mg versus 81 mg. Pacientes em uso de anticoagulantes ou com sangramento GI nos últimos 12 meses foram excluídos. Dos pacientes incluídos, 10.678 tinha informação disponível sobre o tipo de aspirina (entérica versus tradicional), a qual foi coletada conforme reportado pelo paciente. A alocação do tipo de aspirina não era randomizada, e foi feita por escolha do paciente, ou orientação do seu médico.  

O desfecho primário desta sub-análise foi o mesmo do estudo principal, ou seja, o composto de morte, infarto ou AVC. O desfecho principal de segurança foi hospitalização por sangramento maior com necessidade de transfusão. O sangramento GI foi um desfecho secundário. A fim de ajustar para confundidores, na comparação entre os tipos de aspirina (entérica versus convencional), análises multi-variadas por modelos de regressão de Cox foram feitas levando-se em conta diversas co-variáveis, como idade, sexo, raça, tabagismo, grupo randomizado (81 mg versus 325 mg), raça, passado de diabetes, hipertensão e história de sangramento, entre outros.  

 

Estrutura PECOT 

Population: Pacientes com doença CV prévia  

Exposition: Aspirina entérica   

Control: Aspirina convencional   

Outcome: Morte, infarto ou AVC 

Sangramento maior  

Time: 26 meses (mediana)  

 

E aí? 

Dos 10.678 pacientes incluídos nesta análise, 7366 (69,0%) usaram aspirina entérica, enquanto 3312 (31,0%) fizeram uso da formulação convencional. Os pacientes do grupo aspirina entérica tinham uma idade ligeiramente maior (mediana de 68 versus 67 anos, respectivamente), assim como menor percentual de fumantes (8,7% versus 11,0%). Os pacientes em uso de aspirina entérica também tinham maior quantidade de pacientes randomizados para a dose de 81 mg (55,3% versus 39,2%).  

O uso de aspirina entérica não se associou com aumento do desfecho primário de efetividade (hazard ratio [HR] ajustado 0,94; intervalo de confiança [IC] 95% 0,80-1,09; P = 0,40). Também não houve diferença entre os dois grupos em relação ao sangramento maior (HR ajustado 0,82; IC 95% 0,49-1,37; P = 0,46). Não houve diferença na ocorrência de hospitalização por sangramento GI.  

O tipo de aspirina (entérica versus convencional) também não modificou o efeito do tratamento randomizado (81 mg versus 325 mg).   Em relação ao desfecho isquêmico, foi observada uma incidência cumulativa de 7,1% em 26 meses versus 6,6% comparando-se as doses de 325 e 81mg, respectivamente entre os pacientes com formulação entérica (HR 1,13; IC 95% 0,88-1,45). Já entre os pacientes com a formulação convencional, as incidências cumulativas do desfecho isquêmico foram 7,6% versus 8,5% (HR 0,99; IC 95% 0,83-1,18; P para interação = 0,41). O desfecho de sangramento teve uma incidência cumulativa de 0,7% versus 0,5% comparando-se os dois grupos randomizados (325 versus 81 mg, respectivamente) no subgrupo com formulação entérica (HR 2,37; IC 95% 1,02-5,50), e de 0,4% versus 1,0% no subgrupo com formulação convencional (HR 0,89; 0,49-1,64; P para interação = 0,07). Os resultados foram consistentes em análises adicionais que levaram em conta a aderência ao tratamento e também o uso concomitante de medicações protetoras GI.     

  

E agora? 

A aspirina, ou ácido acetilsalicílico (AAS), é um dos medicamentos mais utilizados no mundo, sobretudo na prevenção secundária de doença CV entre os indivíduos com história de infarto, AVC, ou doença coronária. Embora as formulações entéricas sejam bastante populares, não se sabe ao certo se este tipo de formulação tem impacto sobre a segurança e eficácia do medicamento. Diante disso, esta sub-análise do estudo ADAPTABLE traz alguns achados de potencial relevância para a prática clínica.  

Ao ler este estudo, o leitor deve se atentar que duas comparações estão sendo feitas. A primeira se trata de uma análise não randomizada, em que as formulações são comparadas entre si em relação aos desfechos isquêmicos e hemorrágicos, respondendo à pergunta se a formulação se associa ou não a tais eventos. Já a segunda diz respeito à modificação de efeito, também chamada de interação, entre o tratamento randomizado (dose de aspirina) e a formulação da aspirina. Em ambos os casos, a formulação da aspirina não se associou a desfechos isquêmicos ou hemorrágicos, nem modificou os efeitos da dose de aspirina sobre tais eventos.  

O estudo deve ser interpretado à luz de diversas limitações. Em primeiro lugar, enquanto a comparação entre 81 versus 325 mg é randomizada, a comparação entre as formulações não é. Dessa forma, funciona como um estudo observacional, em que diversos confundidores podem influenciar no resultado, ainda que ajustes estatísticos elegantes tenham sido feitos. Em segundo lugar, estranhamente, há um desequilíbrio entre os grupos randomizados dentro dos subgrupos de formulação de aspirina. Isso provavelmente aconteceu porque a escolha da forma, entérica ou convencional, foi decidida após a randomização, pois o paciente alocado para a dose de 81 mg mais provavelmente optou por uma forma entérica do que o alocado para 325 mg. Em terceiro lugar, o dado sobre a formulação de aspirina estava disponível em somente 70% dos pacientes, de tal modo que tais dados faltantes poderiam influenciar nos resultados aqui apresentados. Por último, trata-se de uma análise post-hoc, ou seja, definida após se conhecer os resultados do estudo principal, o que também traz implicações nas inferências e na possibilidade de achados espúrios.  

Apesar do exposto, os invesitgadores do estudo ADAPTABLE conseguiram trzaer um dado importante a partir de um estudo inovador, em que os pacientes eram incluídos à distância, os chamados estudos descentralizados. A partir do que foi observado, nem a dose (81 versus 325 mg) nem tampouco a formulação (entérica versus convencional) importam para os resultados da aspirina. O que importa é tratar todos os pacientes de alto risco CV (leia-se: doença aterotrombótica prévia) com aspirina indefinidamente, ainda mais sendo um medicamento de baixo custo e amplamente disponível.  

Referência

  1. Sleem A, Effron MB, Stebbins A, Wruck LM, Marquis-Gravel G, Muñoz D, Re RN, Gupta K, Pepine CJ, Jain SK, Girotra S, Whittle J, Benziger CP, Farrehi PM, Knowlton KU, Polonsky TS, Roe MT, Rothman RL, Harrington RA, Jones WS, Hernandez AF. Effectiveness and Safety of Enteric-Coated vs Uncoated Aspirin in Patients With Cardiovascular Disease: A Secondary Analysis of the ADAPTABLE Randomized Clinical Trial. JAMA Cardiol. 2023 Oct 4:e233364. doi: 10.1001/jamacardio.2023.3364. Epub ahead of print.  

Sobre o autor

Remo H. M. Furtado

Diretor de Pesquisa do BCRI, Coordenador da Pós-graduação em Pesquisa Clínica da Galen Academy e Professor Colaborador da Faculdade de Medicina da USP