Semaglutida para prevenção de eventos cardiovasculares em pacientes não diabéticos - MDHealth - Educação Médica Independente

Semaglutida para prevenção de eventos cardiovasculares em pacientes não diabéticos

Escrito por: Flávia Bittar Brito Arantes em 13 de novembro de 2023

7 min de leitura

O quê? 

O estudo SELECT (Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Obesity without Diabetes) foi um estudo randomizado, multicêntrico e duplo-cego que incluiu pacientes obesos ou com sobrepeso e não diabéticos, com infarto agudo do miocárdio (IAM), acidente vascular cerebral (AVC) ou doença arterial obstrutiva periférica (DAOP) prévios. O estudo teve como objetivo avaliar o uso da semaglutida subcutânea, na dose-alvo de 2,4mg, para a redução de novos eventos cardiovasculares (CV) associados à obesidade. 

 

Por quê? 

A obesidade é descrita atualmente como uma doença de proporções epidêmicas, que afeta em torno de 50% da população em todo o mundo. Reconhecida como uma patologia que merece tratamento específico, a obesidade contribui para as doenças cardiovasculares diretamente por meio de inflamação, ativação plaquetária, entre outros; e indiretamente por se associar a fatores de risco clássicos como o diabetes mellitus, a dislipidemia e a hipertensão arterial sistêmica. Os medicamentos agonistas do receptor do peptídeo-1 semelhante ao glucagon (GLP-1) sabidamente levam à perda de peso substancial – próxima àquela associada à cirurgia bariátrica – e reduzem o risco de doenças cardiovasculares, especificamente em pessoas com diabetes. Entender como a perda de peso motivada pelo uso da semaglutida impactaria na prevenção secundária de desfechos cardiovasculares em pacientes obesos e sem diabetes era, portanto, imprescindível. 

 

Como? 

Pacientes com mais de 45 anos e índice de massa corpórea (IMC) ≥ 27kg/m2 foram avaliados quanto a um evento cardiovascular prévio/índice que deveria ser: IAM, AVC ou DAOP (descrita como doença arterial periférica sintomática, confirmada por claudicação intermitente com índice tornozelo-braquial <0,85; procedimento de revascularização de vaso periférico ou amputação por doença aterosclerótica). Pacientes com histórico de diabetes mellitus tipo 1 ou 2, hemoglobina glicada (HbA1c) ≥ 6,5%, histórico de pancreatite crônica, doença renal terminal, entre outros, foram excluídos do estudo.  

Os sujeitos de pesquisa foram então randomizados para semaglutida na dose de 2,4mg, subcutânea, 1 vez por semana versus placebo. É importante ressaltar que houve um escalonamento da dose até o alvo de 2,4mg, sendo ajustado conforme a tolerância do paciente a cada 4 semanas: 0,24 mg (valor 8 no contador de doses) à 0,5mg (valor 17 no contador de doses) à 1mg (valor 34 no contador de doses) à 1,7mg (valor 57 no contador de doses) à 2,4mg (valor 80 no contador de doses). 

O desfecho primário de eficácia do estudo foi a primeira ocorrência de qualquer componente do composto de morte por causa cardiovascular, AVC ou IAM (Major adverse cardiovascular events – MACE). Os desfechos secundários confirmatórios foram avaliados em análises de “tempo até o primeiro evento” e testados em ordem hierárquica (apenas se o desfecho anterior atingisse a significância para superioridade): morte por causas cardiovasculares; desfecho composto de insuficiência cardíaca (morte por causas cardiovasculares ou hospitalização ou consulta médica urgente) ou morte por qualquer causa. Vale destacar entre os eventos secundários de suporte: a análise individual dos eventos de IAM e AVC não fatais, desfechos de nefropatia, evolução para DM2 ou pré-DM2 e impacto em peso, circunferência abdominal, pressão arterial, perfil lipídico, qualidade de vida, entre outros. 

 

Estrutura PICOT  

Population: IMC > 27kg/m2, não diabéticos, com doença CV prévia  

Intervention:  Semaglutida 2,4mg, subcutânea, 1 vez por semana 

Control: Placebo, subcutâneo, 1 vez por semana 

Outcome Morte CV, infarto ou AVC  

Time Cerca de 40 meses  

 

E aí? 

Entre outubro de 2018 e março de 2021, 17604 pacientes foram incluídos no estudo, sendo 8803 randomizados para o braço semaglutida e 8801 no braço placebo. A idade média dos pacientes foram 61 anos e em torno de 72% eram do sexo masculino e 84% brancos. O IMC médio de entrada foi de 33 kg/m2 (entre 28-29% dos pacientes tinha sobrepeso) e por volta de 66% dos pacientes tinha a HbA1c≥ 5,7% (média no estudo 5,8%). Aproximadamente 67% dos pacientes tiveram o IAM como seu evento índice de entrada no estudo, seguido por AVC (17%).  

O desfecho primário composto MACE ocorreu em 569 dos 8.803 pacientes (6,5%) no grupo semaglutida e em 701 dos 8.801 pacientes (8,0%) no grupo placebo (hazard ratio [HR] 0,80; intervalo de confiança [IC] de 95%, 0,72 a 0,90; P<0,001). Na análise hierárquica dos desfechos confirmatórios secundários, o primeiro deles, morte cardiovascular, ocorreu em 223 pacientes (2,5%) no grupo semaglutida e em 262 pacientes (3,0%) no grupo placebo (HR 0,85; IC 95%, 0,71 a 1,01; P=0,07). Como o valor P exigido para testes hierárquicos não foi atingido nesse primeiro desfecho, o teste de superioridade não foi realizado para os demais desfechos secundários. 

O desfecho composto secundário de insuficiência cardíaca teve um HR 0,82 (IC 95%, 0,71 a 0,96), e o desfecho de morte por qualquer causa teve HR 0,81 (IC 95%, 0,71 a 0,93). Os desfechos secundários de suporte individuais como IAM não fatal (HR 0,72; IC 95% 0,61 a 0,85) e necessidade de revascularização coronariana (HR 0,77; IC 95% 0,68 a 0,87) também favoreceram a semaglutida. 

A variação média do peso corporal ao longo de aproximadamente 26 meses após a randomização foi de –9,39% com semaglutida e –0,88% com placebo (diferença estimada de tratamento, –8,51 pontos percentuais atribuídos à semaglutida; IC 95%, –8,75 a –8,27). Os pacientes apresentaram ainda uma redução em torno de 6,5cm da circunferência abdominal, 2,7% no colesterol total e 15,6% nos níveis de triglicérides,  atribuíveis à semaglutida. 

A descontinuação permanente do medicamento em 1.461 pacientes (16,6%) no grupo semaglutida e 718 pacientes (8,2%) no grupo placebo grupo (P<0,001), motivadas principalmente por desfechos gastrointestinais. É importante ressaltar, ainda, que 96,9% dos pacientes completaram o estudo e o status vital era conhecido em 99,4% da população do estudo. 

 

E agora? 

Os análogos GLP-1, especialmente a semaglutida, já haviam demonstrado perda de peso considerável e redução de desfechos cardiovasculares em pacientes diabéticos. Porém, o efeito da semaglutida parece ir além da perda ponderal. No presente estudo, apesar da maioria dos pacientes estar em tratamento adequado para os demais fatores de risco modificáveis (ex: 90% em uso de medicamentos hipolipemiantes), bem como em uso de tratamento para prevenção secundária de eventos cardiovasculares, observou-se a ocorrência de MACE em 8% da população no grupo placebo. Isso parece estar relacionado ao risco residual da doença aterosclerótica, representando “o mundo real” e presente mesmo quando existe controle próximo ao ótimo das variáveis de risco (como níveis aproximados de LDL de 78 mg/dl e pressão arterial 131×79 mmHg). Nesse sentido, o presente estudo demonstrou redução global dos desfechos iniciada antes mesmo das 12 semanas necessárias para se atingir a dose alvo do estudo. 

A redução do peso por meio do controle do apetite e saciedade não somente interfere no controle glicêmico, lipídico e até pressórico, como reduz a deposição de gordura intra-abdominal (da circunferência abdominal), perivascular e epicárdica, além da inflamação sistêmica, reduzindo o risco cardiovascular. É importante ressaltar que, durante toda a execução do estudo, os pacientes foram acompanhados de forma intensiva quanto às orientações de mudança de estilo de vida, sendo estimulados a realizar atividade física e reeducação alimentar (inclusive durante a pandemia). O estudo foi conduzido principalmente por cardiologistas e endocrinologistas. Porém, a perda de peso no grupo placebo foi de apenas 0,8% do peso basal, o que mostra uma importante falha nas estratégias atuais implementadas e uma real necessidade de políticas públicas (habilidades e técnicas da ciência do comportamento para gerenciar mudanças de estilo de vida) que gerem engajamento adequado e resultados consistentes e persistentes. 

O estudo SELECT, no entanto, apresenta limitações que devem ser ressaltadas e discutidas. Mais uma vez, houve baixa representatividade de mulheres e negros, população que tem a obesidade tão prevalente em seu meio e para quem ainda não temos respostas consistentes sobre terapias eficazes. Ainda, apesar da demonstração de que a redução dos desfechos foi independente do nível da HbA1c, a maioria dos pacientes do estudo eram pré-diabéticos, o que traz por si um maior risco cardiovascular a essa população. Assim, o uso irrestrito dos análogos da GLP-1 por pacientes de menor risco e sobrepeso deve ser evitada e pensada à luz das evidências atuais. Importante ressaltar que a medicação foi segura quanto aos desfechos adversos que classicamente geram preocupação com medicamentos da classe (como pancreatite ou neoplasia tireoidiana). 

Portanto, à luz dos resultados atuais, fica claro a importância do tratamento dos fatores de risco especialmente após um primeiro evento cardiovascular. A semaglutida se provou uma medicação promissora a ser considerada na prática do cardiologista, porém se trata de uma estratégia medicamentosa de prevenção adicional àquelas classicamente estabelecidas. Devemos ressaltar que o custo ainda é um limitador para o seu uso e que o tratamento da obesidade deve fazer uso das atuais medicações em mercado, mas se basear também nas clássicas (e talvez não tão bem estimuladas) mudanças de estilo de vida. 

Referência

  1. Lincoff AM, Brown-Frandsen K, Colhoun HM, Deanfield J, Emerson SS, Esbjerg S, Hardt-Lindberg S, Hovingh GK, Kahn SE, Kushner RF, Lingvay I, Oral TK, Michelsen MM, Plutzky J, Tornøe CW, Ryan DH; SELECT Trial Investigators. Semaglutide and Cardiovascular Outcomes in Obesity without Diabetes. N Engl J Med. 2023 Nov 11. doi: 10.1056/NEJMoa2307563. Epub ahead of print. 

Sobre o autor

Flávia Bittar Brito Arantes

Professora Adjunta da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia, Docente na Faculdade IMEPAC e Coordenadora Médica do Centro de Pesquisa Eurolatino em Uberlândia